sexta-feira, 2 de junho de 2017

Reflexões sobre Moral e Ética

Reflexões sobre Moral e Ética

O que vem a ser moral? Ou ser uma pessoa moral? Ou quando dizemos para alguém: tem à moral? (geralmente interpelação a fazer algo). A questão é que sempre fazemos grande confusão ao que vem a ser moral e normalmente a confundimos com a ética. Essa reflexão tem por objetivo discorrer sobre isso, com a finalidade de apresentar uma sucinta clarificação, não definitiva, sobre o assunto.
Na dinâmica equação da vivência/convivência a primeira pessoa com quem convivemos é conosco mesmo, qualquer elaboração de ideias, palavras e falas, é antes de tudo um evento de nós para nós mesmos. É um acontecimento interno que se exterioriza, ou não, no mundo. Assim, somos construtores de realidades que em sua maioria o mundo nem percebe que existem, realidades que por serem existente somente em nós mesmos passam pelo crivo valorativo (bem/mal, certo/errado) existente em nós mesmos, e que somente podem ser valorados por outros se forem por nós externalizados (pela fala, escrita ou outro meio).
Então a primeira pessoa a valorar, censurar, aprovar/reprovar nossas ideias, pensamentos, vontades, desejos somos nós mesmos. Esse conjunto valorativo de nós para nós mesmos é o que designamos de moral, que é a valoração que nós mesmos fazemos dos nossos pensamentos e ações com interação conosco e com o mundo.
Por exemplo, Platão conta nos a história do anel de Giges:

Giges era um pastor que morava na região da Lídia. Após uma tempestade, seguida de um tremor de terra, o chão se abriu e formou uma larga cratera onde ele apascentava seu rebanho.

Surpreso e curioso, o pastor desceu até a cratera e descobriu, entre outras coisas, um cavalo de bronze, cheio de buracos através dos quais enfiou a cabeça e viu um grande homem nu que parecia estar morto.

Ao avistar um belo anel de ouro na mão do morto, Giges o tirou e tratou de fugir logo dali. Mais tarde, reunindo-se com os outros pastores para fazer o relatório mensal dos rebanhos ao rei, Giges usou o anel.

Após tomar seu lugar entre os pastores na Assembleia, ele girou por acaso o engaste do anel para o interior da mão e imediatamente tornou-se invisível para os demais presentes.

E foi assim, totalmente invisível, que Giges ouviu os colegas o mencionarem como se ele não estivesse ali. Mexeu novamente o engaste do anel para fora da mão e tornou a ficar visível. Admirado com a descoberta desse poder, Giges repetiu a experiência para confirmar a magia. Seguro de si, sem titubear, ele dirigiu-se ao palácio, seduziu a rainha, matou o rei a apoderou-se do trono.

Platão afirma que, tanto faz se colocarmos um anel desses no dedo de um homem justo e outro no dedo de um homem injusto, o fato é que não encontraremos ninguém com temperamento suficientemente forte para permanecer fiel à justiça e resistir à tentação de se apoderar dos bens e dos benefícios de outrem.

A grande pergunta que a alegoria nos suscita é o que você faria se fosse invisível? Essa é a análise do que é a nossa moral, o que faríamos se pudéssemos fazer o que nos conviesse sem o perigo de censura ou retaliação de outros.
O farol vermelho é um sinal claro de que o carro deve ser parado. Se o condutor para é porque acha justo, correto e certo parar seu veículo ou porque há uma força (legal/social) que obriga que o faça? A questão é refletirmos, moral é o que você decide com você mesmo a fazer ou não. Diferente de Ética, que é o que você decide em interação direta ou não, a fazer ou não. Ação que leva o outro em conta. A moral é uma questão pessoal, você com você mesmo, uma questão de regras de vivência.
Não se pode ignorar que essa moral não veio do nada, ou do além, e mesmo que tivesse vindo teria de ser transmitida a nós. O que nos leva a pensar que a moral é uma assimilação das realidades/verdades do mundo que participamos. A moral cristã, por exemplo, não fará o menor sentido num mundo de valores islâmicos, hindu ou outro. 
A moral é nestes termos o uso da inteligência para definir a melhor vivência, enquanto que a ética, como sua extensão, é o uso da inteligência para definir a melhor convivência. Veja que, na moral definimos quem somos e como convivemos, e nesse movimento da moral para ética construímos nossa relação com o outro. Veja bem, construímos, e assim, se uma relação qualquer que tenhamos não se apresentar como sendo boa, positiva e respeitosa, é porque os parâmetros morais utilizados na convivência não estão alinhados entre si (o que é normal de acontecer) e não está havendo a devida ou necessária atenção/cuidado/racionalização da situação, que poderia levar a uma possível solução ou uma possível aceitação das condições de convivência de forma respeitosa e produtiva. 
Já a Ética é a ação moral em ajustamento com outro em prol de uma melhor convivência. E aqui no campo da Ética não temos um simples diálogo entre moral e moral para construção de uma ética adequada para ambos, pois quando usamos nossa moral, que é uma produção/construção em nós da nossa interação com o mundo, ela já é um reflexo de um pensamento ético presente na estrutura da formação de nosso pensamento moral. Neste sentido para definirmos a ética que melhor se nos ajusta e compreendermos a formação moral que é a nossa, precisamos compreender as concepções éticas clássicas e suas influências sobre a nossa formação moral para então podermos definir qual é, ou ainda, qual seria a ética mais adequada para definir a nossa convivência a partir da nossa pratica moral e existencial.
Não poderíamos começar essa análise ético filosófica senão a partir de Sócrates, e em Sócrates encontramos a definição do ser como norteadora do agir ético por excelência. É na proposta do “conhece te a ti mesmo” que está a existência de maior significado e relevância, visto que todo o exterior não fará sentido sem uma adequação ao conhecimento de si que deveria condicionar o existir e o conviver. Então a Maiêutica é a dialética (Ironia) consigo e com o mundo para o conhecimento da verdade que habita o ser. Assim, a ética é um ajustamento de si a partir das verdades descobertas em si e no mundo para um ajustamento justo, equilibrado e ético ao ser e a convivência na polis, pois aqui a definição do bom viver não está no homem, mas antes na atuação do homem no todo social (Polis Grega), pois a sua moral só será justa e boa se promover um crescimento e engrandecimento da ética da polis grega que definiu a própria moral usada para isso como sendo uma moral ética.
Então vem Platão, aluno de Sócrates, e para ele o mundo é dualista (composto pelo mundo ideal e pelo mundo sensível), onde o mundo ideal é a realidade da alma (divina e infinita) que se sobrepõe ao mundo real (material e finito). O mundo das ideias é referência ética para a definição do existir. É lá que está a bondade, o amor, a justiça, o bem e tudo que seja necessário para uma existência boa e digna. A ética é então um ajustamento existencial a esse mundo soberano que norteia nosso existir moral. Platão e sua filosofia seguem o curso da história e ela nos traz o discípulo mais conhecido de Platão, Aristóteles, que foi um pensador de um proporção e produção imensa. E, segundo ele, a ética é um ajustamento aos desígnios cósmicos determinadores da excelência do próprio existir. Para Aristóteles, assim como em tudo no universo, há uma finalidade (thelos) para todas as coisas existentes e todos os seres viventes. A ética é então a transformação do ato do ser em potência do ser. A vida ética é aquela que atinge a sua finalidade cósmica. O flautista com a flauta, o cirurgião com o bisturi, o professor com o giz, Neymar com a chuteira e assim por diante. Nestes termos o existir moral é um ajustamento ético aos próprios dons, talentos e potencialidades que nos foram dadas, e a avaliação da vida boa, da vida com sentido ou da vida ética é feita tendo por referência as próprias potências, o próprio thelos. A vida boa, a vida ética nada tem a haver com sucesso, prestigio, riqueza e conquistas; ela é um ajustamento moral e ética ao próprio existir cósmico.
Temos ainda no horizonte do pensamento grego a ética desenvolvida pelo pensamento grego helenista, desenvolvido em pleno declínio sócio político grego, que faz com que a reflexão ética deixe de ter seu referencial em alguma realidade exterior divina, ideal, e passa a ter a referência ética em uma esfera pessoal e existencial. A busca não é do mundo ideal ou cósmico, agora a referência ética é a felicidade que se alinha e depende da ataraxia (paz de espírito) para existir. Seja no cinismo, ceticismo, epicurismo ou estoicismo (escolas mais conhecidas e difundidas) a prática filosófica é a de conquistar a ataraxia para experimentar a felicidade. E, nestes termos, a moral se ajusta a uma concepção ética de não permitir que realidades filosóficas e sócio estruturais condicionem o próprio ser, e sim, fazer o próprio ser se adequar moralmente há uma ética que tenha como adequação moral a ataraxia no próprio ser para o alcance da felicidade que agora está posta na esfera pessoal, no alinhamento da conjuntura moral há uma ética determinadora da existência pessoal.
E, por fim[1], temos a ética cristã, e nela a referência central é Deus, o viver moral e ético deve ser alinhado a vontade de Deus, pois a vida boa, o bom viver e existir pleno é uma decorrência de uma existência que se alinha a aquele que criou o ser e tem para ele o caminho da felicidade. A conduta moral então é uma prática existencial como criatura de Deus que tem um propósito para cada filho seu, e assim, o êxito existencial está nesse alinhamento da criatura ao criador, o alinhamento dessa conduta moral há uma conduta ética determinadora do existir como criatura de Deus e filho de Deus.
Assim, concluímos que a moral é a ação que o indivíduo tem na esfera intima e pessoal, ou seja, são as determinações das determinações do seu ser e do seu agir. E que essas determinações morais têm por referência as determinações éticas, que são norteadoras do agir e existir na esfera moral e na esfera relacional, ou seja ética.


[1] Não que o tema se esgota aqui, e sim por pretensão textual do assunto, ética é tema histórico e humano, enquanto convivermos falaremos e produziremos ética, para uma busca constante de adequação da convivência.