Reflexões sobre Moral e Ética
O que vem a ser moral? Ou ser uma pessoa moral? Ou quando
dizemos para alguém: tem à moral? (geralmente interpelação a fazer algo). A
questão é que sempre fazemos grande confusão ao que vem a ser moral e
normalmente a confundimos com a ética. Essa reflexão tem por objetivo discorrer
sobre isso, com a finalidade de apresentar uma sucinta clarificação, não
definitiva, sobre o assunto.
Na dinâmica equação da vivência/convivência a primeira
pessoa com quem convivemos é conosco mesmo, qualquer elaboração de ideias,
palavras e falas, é antes de tudo um evento de nós para nós mesmos. É um
acontecimento interno que se exterioriza, ou não, no mundo. Assim, somos
construtores de realidades que em sua maioria o mundo nem percebe que existem,
realidades que por serem existente somente em nós mesmos passam pelo crivo
valorativo (bem/mal, certo/errado) existente em nós mesmos, e que somente podem
ser valorados por outros se forem por nós externalizados (pela fala, escrita ou
outro meio).
Então a primeira pessoa a valorar, censurar,
aprovar/reprovar nossas ideias, pensamentos, vontades, desejos somos nós
mesmos. Esse conjunto valorativo de nós para nós mesmos é o que designamos de
moral, que é a valoração que nós mesmos fazemos dos nossos pensamentos e ações
com interação conosco e com o mundo.
Por exemplo, Platão conta nos a história do anel de Giges:
Giges era um pastor que morava na região da Lídia. Após uma tempestade, seguida de um tremor de terra, o chão se abriu e formou uma larga cratera onde ele apascentava seu rebanho.
Surpreso e curioso, o pastor desceu até a cratera e descobriu,
entre outras coisas, um cavalo de bronze, cheio de buracos através dos quais
enfiou a cabeça e viu um grande homem nu que parecia estar morto.
Ao avistar um belo anel de ouro na mão do morto, Giges o tirou e
tratou de fugir logo dali. Mais tarde, reunindo-se com os outros pastores para
fazer o relatório mensal dos rebanhos ao rei, Giges usou o anel.
Após tomar seu lugar entre os pastores na Assembleia, ele girou
por acaso o engaste do anel para o interior da mão e imediatamente tornou-se
invisível para os demais presentes.
E foi assim, totalmente invisível, que Giges ouviu os colegas o
mencionarem como se ele não estivesse ali. Mexeu novamente o engaste do anel
para fora da mão e tornou a ficar visível. Admirado com a descoberta desse
poder, Giges repetiu a experiência para confirmar a magia. Seguro de si, sem
titubear, ele dirigiu-se ao palácio, seduziu a rainha, matou o rei a
apoderou-se do trono.
Platão afirma que, tanto faz se colocarmos um anel desses no
dedo de um homem justo e outro no dedo de um homem injusto, o fato é que não
encontraremos ninguém com temperamento suficientemente forte para permanecer
fiel à justiça e resistir à tentação de se apoderar dos bens e dos benefícios
de outrem.
A grande pergunta que a alegoria nos suscita é o que você
faria se fosse invisível? Essa é a análise do que é a nossa moral, o que
faríamos se pudéssemos fazer o que nos conviesse sem o perigo de censura ou
retaliação de outros.
O farol vermelho é um sinal claro de que o carro deve ser
parado. Se o condutor para é porque acha justo, correto e certo parar seu
veículo ou porque há uma força (legal/social) que obriga que o faça? A questão
é refletirmos, moral é o que você decide com você mesmo a fazer ou não.
Diferente de Ética, que é o que você decide em interação direta ou não, a fazer
ou não. Ação que leva o outro em conta. A moral é uma questão pessoal, você com
você mesmo, uma questão de regras de vivência.
Não se pode ignorar que essa moral não veio do nada, ou do
além, e mesmo que tivesse vindo teria de ser transmitida a nós. O que nos leva
a pensar que a moral é uma assimilação das realidades/verdades do mundo que
participamos. A moral cristã, por exemplo, não fará o menor sentido num mundo de
valores islâmicos, hindu ou outro.
A moral é nestes termos o uso da inteligência para definir
a melhor vivência, enquanto que a ética, como sua extensão, é o uso da
inteligência para definir a melhor convivência. Veja que, na moral definimos
quem somos e como convivemos, e nesse movimento da moral para ética construímos nossa relação com o outro.
Veja bem, construímos, e assim, se uma relação qualquer que tenhamos não se
apresentar como sendo boa, positiva e respeitosa, é porque os parâmetros morais
utilizados na convivência não estão alinhados entre si (o que é normal de
acontecer) e não está havendo a devida ou necessária atenção/cuidado/racionalização
da situação, que poderia levar a uma possível solução ou uma possível aceitação
das condições de convivência de forma respeitosa e produtiva.
Já a Ética é a ação moral em ajustamento com outro em prol
de uma melhor convivência. E aqui no campo da Ética não temos um simples
diálogo entre moral e moral para construção de uma ética adequada para ambos, pois
quando usamos nossa moral, que é uma produção/construção em nós da nossa interação
com o mundo, ela já é um reflexo de um pensamento ético presente na estrutura
da formação de nosso pensamento moral. Neste sentido para definirmos a ética
que melhor se nos ajusta e compreendermos a formação moral que é a nossa,
precisamos compreender as concepções éticas clássicas e suas influências sobre
a nossa formação moral para então podermos definir qual é, ou ainda, qual seria
a ética mais adequada para definir a nossa convivência a partir da nossa
pratica moral e existencial.
Não poderíamos começar essa análise ético filosófica senão
a partir de Sócrates, e em Sócrates encontramos a definição do ser como
norteadora do agir ético por excelência. É na proposta do “conhece te a ti
mesmo” que está a existência de maior significado e relevância, visto que todo
o exterior não fará sentido sem uma adequação ao conhecimento de si que deveria
condicionar o existir e o conviver. Então a Maiêutica é a dialética (Ironia) consigo
e com o mundo para o conhecimento da verdade que habita o ser. Assim, a ética é
um ajustamento de si a partir das verdades descobertas em si e no mundo para um
ajustamento justo, equilibrado e ético ao ser e a convivência na polis, pois
aqui a definição do bom viver não está no homem, mas antes na atuação do homem
no todo social (Polis Grega), pois a sua moral só será justa e boa se promover
um crescimento e engrandecimento da ética da polis grega que definiu a própria
moral usada para isso como sendo uma moral ética.
Então vem Platão, aluno de Sócrates, e para ele o mundo é
dualista (composto pelo mundo ideal e pelo mundo sensível), onde o mundo ideal
é a realidade da alma (divina e infinita) que se sobrepõe ao mundo real
(material e finito). O mundo das ideias é referência ética para a definição do
existir. É lá que está a bondade, o amor, a justiça, o bem e tudo que seja
necessário para uma existência boa e digna. A ética é então um ajustamento
existencial a esse mundo soberano que norteia nosso existir moral. Platão e sua
filosofia seguem o curso da história e ela nos traz o discípulo mais conhecido
de Platão, Aristóteles, que foi um pensador de um proporção e produção imensa. E,
segundo ele, a ética é um ajustamento aos desígnios cósmicos determinadores da excelência
do próprio existir. Para Aristóteles, assim como em tudo no universo, há uma
finalidade (thelos) para todas as coisas existentes e todos os seres viventes. A
ética é então a transformação do ato do ser em potência do ser. A vida ética é
aquela que atinge a sua finalidade cósmica. O flautista com a flauta, o cirurgião
com o bisturi, o professor com o giz, Neymar com a chuteira e assim por diante.
Nestes termos o existir moral é um ajustamento ético aos próprios dons,
talentos e potencialidades que nos foram dadas, e a avaliação da vida boa, da
vida com sentido ou da vida ética é feita tendo por referência as próprias potências,
o próprio thelos. A vida boa, a vida ética nada tem a haver com sucesso,
prestigio, riqueza e conquistas; ela é um ajustamento moral e ética ao próprio existir
cósmico.
Temos ainda no horizonte do pensamento grego a ética desenvolvida
pelo pensamento grego helenista, desenvolvido em pleno declínio sócio político
grego, que faz com que a reflexão ética deixe de ter seu referencial em alguma
realidade exterior divina, ideal, e passa a ter a referência ética em uma
esfera pessoal e existencial. A busca não é do mundo ideal ou cósmico, agora a
referência ética é a felicidade que se alinha e depende da ataraxia (paz de
espírito) para existir. Seja no cinismo, ceticismo, epicurismo ou estoicismo
(escolas mais conhecidas e difundidas) a prática filosófica é a de conquistar a
ataraxia para experimentar a felicidade. E, nestes termos, a moral se ajusta a
uma concepção ética de não permitir que realidades filosóficas e sócio estruturais
condicionem o próprio ser, e sim, fazer o próprio ser se adequar moralmente há
uma ética que tenha como adequação moral a ataraxia no próprio ser para o
alcance da felicidade que agora está posta na esfera pessoal, no alinhamento da
conjuntura moral há uma ética determinadora da existência pessoal.
E, por fim[1], temos a ética cristã, e
nela a referência central é Deus, o viver moral e ético deve ser alinhado a
vontade de Deus, pois a vida boa, o bom viver e existir pleno é uma decorrência
de uma existência que se alinha a aquele que criou o ser e tem para ele o
caminho da felicidade. A conduta moral então é uma prática existencial como criatura
de Deus que tem um propósito para cada filho seu, e assim, o êxito existencial
está nesse alinhamento da criatura ao criador, o alinhamento dessa conduta moral
há uma conduta ética determinadora do existir como criatura de Deus e filho de
Deus.
Assim, concluímos que a
moral é a ação que o indivíduo tem na esfera intima e pessoal, ou seja, são as determinações
das determinações do seu ser e do seu agir. E que essas determinações morais
têm por referência as determinações éticas, que são norteadoras do agir e
existir na esfera moral e na esfera relacional, ou seja ética.
[1] Não que
o tema se esgota aqui, e sim por pretensão textual do assunto, ética é tema
histórico e humano, enquanto convivermos falaremos e produziremos ética, para
uma busca constante de adequação da convivência.