segunda-feira, 24 de julho de 2017

O Bom Preconceito: o preconceito de se ter preconceitos

O Bom Preconceito: o preconceito de se ter preconceitos

Esse texto tem por intenção dialogar e expandir o tema do preconceito e suas múltiplas e paradoxais questões complicadoras do seu entendimento e abordagem. Usarei como referência central o texto/livro Em Defesa do Preconceito de Theodore Dalrymple, onde ele amplia a discussão do tema e lança luzes sobre o mesmo, e nos desafia a enfrentar esse tema tão arguto e complicado, e que nos convida a enfrentar nossos próprios preconceitos, o ato mais difícil de se executar.  
A primeira coisa que precisamos pensar é que o nosso norte passou a ser não ter preconceito nenhum. A ideia é de que sem preconceitos conviver é melhor, mas a ideia de que sem preconceito é melhor, é contraditória em si, visto que é preciso um pré-conceito para fazer isso. A conclusão de que sem preconceito temos uma convivência e existência mais livre e potencialmente melhor é contraditória, pois faz isso ser um preconceito. Também temos o ceticismo metafisico (nulidade dos valores ideais), que consiste em avaliar as implicações que determinam negativamente a forma de decidir e conduzir à vida  (negando-a). Porém esse ceticismo é uma armadilha, pois não avalia tudo, mas o que lhe convém. Avalia a partir dos próprios pressupostos não metafísicos, e assim não é cético, é seletivo. O estudo da história está sujeito ao pesquisador da história, e, esse estudo nos diz aquilo que queremos ouvir. Usamos a história para validar a nós mesmos ou o que esperamos encontrar ao pesquisar (os preconceitos já existentes). O estudo/pesquisa é uma reprodução do mundo, e tendemos a negativar o passado para legitimar o presente e produzir um preconceito validador do futuro. Olhando isso por uma corrente materialista podemos dizer que somos átomos morais a nos mover no vácuo, o que significa dizer que somos matéria/células/órgãos que apreende o mundo e atribuem valores a ele e que faz desses valores seus preconceitos para se relacionar com ele e com tudo que envolva sua existência nele.
Em todos os meios sociais (mídia, família, escola) temos visto a prática de uma pedagogia dita não preconceituosa, que significa não limitar a criança, não impor obstáculos ao seu desenvolvimento. Só que o que se ignora é que liberar a criança é não permitir a ela uma reflexão racional e sensata sobre o porquê de tudo ser como é, e não limitar, instruir, controlar, direcionar é castrar (limitar seu desenvolvimento). A criança não está livre de preconceitos apenas porque ficou livre dos preconceitos de seus pais, ela se tornará escrava de seus próprios preconceitos, e o pior é que esses preconceitos serão construídos sem orientação, sem a prática da vivência e experiência dos mais velhos. É preciso entender que a abstenção de se incutir preconceitos é geradora de efeitos muito piores do que fazê-los, ainda que fossem ou sejam feitos de maneira agressiva ou irracional, o fato de serem feitos é melhor do que não o serem. É preciso entender que o solo que sustenta o preconceito será sempre necessário, ainda que o preconceito seja alterado, para andar sobre o chão é preconceituosamente que se anda, e assim, o ideal é que haja consciência disso, que haja consciência para fazer isso.
Para prosseguir com a reflexão é preciso fazer uma definição do que seja Preconceito e quais as suas possíveis extensões. Uma compreensão geral de preconceito é entende-lo como um comportamento automático, um agir que de tão praticado se torna um hábito. Preconceitos (práticas de vida) são bons e maus, e se intercalam na história, não há convivência sem preconceitos. Preconceitos são noções orientadoras do agir que de tão práticas e praticadas se tornam em um jeito natural de ser e de agir. Temos como exemplo que há duas décadas o casamento era obrigatório em caso de gravidez precoce, tanto por parte dos pais da moça como pelos pais do rapaz, é fácil verificar que em nossos dias já não é mais assim. temos também que há 30 anos atrás as pessoas fumavam dentro de casa ou de qualquer outro estabelecimento (mercado, bar, restaurante, trabalho).
Se você tomar a compreensão do último parágrafo como referência poderá refletir comigo que na verdade não lutamos contra um preconceito qualquer, solto por ai. Nossa busca é de legitimar os nossos preconceitos em detrimento de outros preconceitos que possam colocar os nossos em risco, em conflito ou em deterioração.
Uma consequência direta da luta mundial contra o preconceito, todo e qualquer tipo de preconceito, foi a conversão do convencional em transgressor, a tradição (que é preconceito) familiar, social e cultural se tornaram em modelos não positivos de convivência. O preconceito afirmativo agora é ser transgressor (criar regras que se adequem a própria personalidade, desejos e interesses do individuo), e transgredir o convencional é agir positivamente, só que “o desejo de se furtar a uma convenção é, em si mesmo, uma convenção”, e na busca de se fugir do gato corre-se junto com o rato. Toda escolha é o resultado de uma produção conceitual, mas não basta a racionalização de conceitos. Pois a racionalidade não é o único componente necessário para a formulação de conceitos e pré-conceitos. Se as escolhas forem supremamente racionais perderão o poder real dos seus efeitos, visto que a racionalidade por si só não é suficiente, não é competente, não dá conta do humano e de toda a sua complexidade existencial; além de ser, a racionalidade, uma prática sempre tendente ao egocentrismo e preconceitos individualizantes.
Preconceitos são preceitos, conceitos e valores norteadores do próprio pensar, sentir e agir. Eles antecedem estes três em suas manifestações. Dito isto, temos que pensar uma outra questão da produção de conhecimento. Por mais racional que seja o conhecimento, e que esteja estabelecido como verdadeiro, é preciso uma autoridade (saber comprovado e saber autorizador) para que o mesmo se torne uma referência conceitual. O postulado contemporâneo de que todas as opiniões são válidas invalida o conceito racional/científico de produção do saber. A armadilha de nossa época “a busca de verdades em detrimento do convencional” na negação do que foi estabelecido pela tradição (tida como arcaica, opressora e preconceituosa), se contradiz, pois nega a  tradição o direito de ser um um preconceito valido. A consequência direta dessa atitude são as construções sem alicerces.
Preconceitos que surgem tendo como referência o sujeito que os preconiza. Isso faz parte do advento do individualismo racional, o indivíduo usa a filosofia para legitimar e legalizar o seu querer. O desejo pessoal se sobrepõe a qualquer outro, o preconceito é elaborado no e pelo indivíduo (singular), tudo que o contrarie é perverso. O mal é tudo ou todo que contrarie os preconceitos subjacentes no ser. Portanto, vale perguntar: Como criar uma comum-unidade se os princípios primeiros, gerais e sociais são autos de tudo, são determinações pessoais? O decente é agora de cunho singular, fruto de uma racionalidade prática e não de uma racionalidade racional ou racionalidade social/convencional.
O direito a todos com direito gera um paradoxo de direitos, visto que os direitos se fazem deveres que se excluem na possibilidade de realização de direito a todos. Como sustentar a máxima “Quero, portanto, tenho direito” para todos? Quanto mais radical o individualismo, mais paradoxal, e quanto mais presente, maior a sua autoridade sobre o querer e o ser do indivíduo. A falta de autoridades intermediárias, tais como a família, a igreja ou a escola pode a até prevenir de alguns males potenciais presentes nessas instituições, contudo, sua exclusão abre espaço para outras estruturas que veem para substituir e estabelecer novas, as quais desconhecemos e não podemos prever suas consequências. O que não significa que serão negativas, e certamente não serão totalmente positivas.
O fato histórico potencializador dessas transformações conceituais é o de que por ser certas discriminações absolutamente negativas (como por exemplo o preconceito racial e preconceito contra a mulher), não deveria significar dizer que todas discriminações sejam ruins. Discriminar é eleger/preferir/optar, e isso nos possibilita um aprimoramento existencial. É preciso trilhar esse caminho humano que nos humaniza. Sem discriminação de qualquer tipo, qualquer tipo de ação (como estupro e pedofilia) seriam válidos. A rejeição do preconceito não é boa em si mesma. A rejeição do negativo não é positiva. O reconhecimento da condição humana (boa e má) e o que se faz a partir disso que determina se o rejeitar é positivo. Filosofar é construir o pensar, é construir o saber, é decidir racionalmente (não somente) na convivência quais as ampliações e quais as limitações para a mesma. Isso é simples de justificar. A mente humana é uma formação cognitiva condicionada e estruturada ao seu meio de pertencimento. Logo, as suas determinações são determinadas por seu lugar de pertencimento, e, logo, os preconceitos que as envolvem ao mesmo tempo a determinam. Assim, a noção de verdade está subjugada as pressuposições e preconceitos do lugar onde é emitida. E, por isso, construir modelos sociais e vivenciais sem preconceitos se faz em preconceitos que afirmam não existir preconceitos. Não reconhecer autoridade é, levado a consequências extremas, não reconhecer a si. Pois subjugar o poder por seu mau uso é deslegitimar a condição existencial que permite fazer a análise. E em última instancia é colocar a si mesmo como a maior e mais absoluta autoridade. O que nos leva não a negar a autoridade, e sim legitimá-la somente a partir de si. A completa rejeição da autoridade[1] (qualquer uma) é egoísmo. Na matriz da convivência social (formatada em preconceitos) há positividades inerentes ao convívio humano, se se nega essa matriz a convivência se sujeita ao indivíduo, o que não é positivo para a sociedade. Seus preconceitos são para si mesmo, em favor de si, jamais do todo, visto que nega a autoridade e benevolência da convivência com o outro.
Há terríveis efeitos sociais ao se abandonar certos preconceitos. A escolha é sempre livre, até que se esteja (inconscientemente) preso a predisposições de gosto/preferência/interesse. A liberdade escoa quando abdicamos do próprio ato de escolher e suas motivações. No fundo queremos liberdade para nós e encarceramento do outro (de preferência em nós). O melhor dos mundos é o que eu tudo posso e o outro é o meio/caminho para eu tudo poder no meu querer. Algo é o que é porque alguém ou uma autoridade (pessoa ou não), o determinou. Todos os “algos” foram assim constituídos. Se negarmos a autoridade, negamos junto a validade de todas as coisas, inclusive qualquer que se dispõem em questionar a autoridade faz com que autoridade? Ao estruturar um pensamento que desvalida qualquer estrutura como sendo válida, faz se dessa construção uma contra estrutura, logo uma validação intelectual daquilo que se busca desvalidar. Como o exercício do julgamento (preconceitos) é inevitável, os preconceitos são necessários e salutares. Até porque sem preconceito não há virtudes. Não podemos despir-nos do que o mundo nos deu, perceber um nu só é possível por termos vestido nos com o mundo. Qual critério moral usamos para definir algo como bom ou ruim; o critério é preconceito e sem preconceito não é possível definir o melhor. Assim, é preciso aprender a ser preconceituoso. Ser preconceito não é pensar ou agir com preconceito (racial, gênero, econômico ou social), mas é saber que o preconceito é uma condição existencial humana e modela seu pensar, sentir e querer. Por isso precisa ser pensado como uma condição sine qua non que precisa ser percebida e aperfeiçoada na prática existencial humana. O preconceito é necessário para a manutenção da mais elementar decência, que foi estabelecida preconceituosamente com consciência e intenção de assim o fazer. Assim, livre-se das conotações negativas da palavra preconceito, e viva sem preconceitos de se ter preconceitos que gerem preconceitos melhoradores da existência e convivência humana. Encerro o texto com a citação de um trecho do livro referência desse texto:
“É preciso ter capacidade de discernimento para saber quando um preconceito deve ser mantido e quando deve ser abandonado. Os preconceitos são como amizades: devem ser mantidos em bom estado. Por vezes os amigos se distanciam, e por vezes o mesmo deve acontecer aos homens diante de certos preconceitos; mas a amizade frequentemente se aprofunda com a idade e a experiência, e o mesmo deve acontecer com alguns preconceitos. Eles são aquilo que dão caráter as pessoas, mantendo-as juntas. Não podemos viver sem eles.”




[1] A importância da autoridade está em se pensar em ter que confiar em uma pessoa que não está habilitada para realizar uma atividade em seu favor. Como pilotar um avião, fazer uma cirurgia do coração, educar seus filhos. É a autoridade que regimenta e capacita a preparação e instrução da correta execução.