terça-feira, 13 de agosto de 2019

Linguagem e Pensamento


A Linguagem e o Pensamento

O ato de pensar é tão natural como o ato de respirar, e, normalmente fazemos os dois sem consciência de realiza-los. O que sugiro é que pensar é tão ou mais importante que respirar, pois para se saber que se respira é preciso pensar. Logo, o pensamento é uma constituição natural e primordial ao humano, mesmo que esse pensamento não tenha consciência de estar pensando. O pensamento é um resultado direto, indireto, paradoxal e complexo da existência já inserida no mundo[1] e suas possibilidades de linguagem, no organismo humano e suas possibilidades de percepção e construção do mundo. O que nos leva a linguagem como um emolduramento simbólico do mundo fora de nós e do mundo dentro de nós para expressar para nós mesmos e para os outros. A linguagem é início, meio e fim do processo filosófico. Como no quadro de René Magritte em que desenha com um cachimbo e nomeia a obra como “isto não é um cachimbo”, criando um contraponto linguístico e simbólico com sua obra.    
A linguagem é o instrumento para reconhecimento e conhecimento de um saber/entender/compreender. Logo, é a linguagem que estrutura e formata esse saber. A linguagem (por exemplo a matemática) é em si um construto de saberes e conceitos que se tornam independentes de seus construtores e que também são referências cognitivas para eles. Pois a comunicação (linguagem representativa) de um pensamento me permite ir além dele para através dele fazer novas descobertas sobre ele ou com ele. A imagem de uma borboleta prende a minha representação há uma borboleta singular, mas a palavra borboleta me permite pensar em todas as borboletas de uma vez, ou, representar a borboleta para o que não é borboleta (jogos de linguagem).
A discussão filosófica é de que o pensamento existe mesmo que não haja consciência de pensamento (em um bebê, por exemplo), mas é a linguagem o canal de representação para si e para o mundo desses pensamentos. Como seria possível pensar sem estabelecer signos, símbolos ou imagens sobre o pensamento. Como eu poderia informar para a pessoa a quem amo do meu sentimento sem um instrumento linguístico/representativo que seja perceptível e compreensível por ela. Não posso transferir o sentimento para o ser da pessoa amada, logo a relação entre nós será de busca de demonstração e compreensão linguística (beijo, abraço, carinho, palavras, flores, música) dos sentimentos latentes no meu ser.
A linguagem se estrutura em nossa possibilidade de pensar que se estrutura em nossas possibilidades biológicas e fisiológicas de perceber o mundo. Temos uma estrutura de possibilidades cognitivas (Kant) que delimitam nossa percepção e enquadramento do mundo a partir do qual construímos uma linguagem representativa dele e de nós mesmos. As imagens e representações que elaboramos tem a ver com nossas possibilidades fisiológicas e biológicas de percepção da realidade, tivéssemos nós outros recursos para percepção e construção da realidade, certamente a enquadraríamos de diferentes maneiras. E, isso não fala só da nossa ação de olhar e representar o mundo, mas, também, das ferramentas (que tiramos do mundo) que utilizamos para fazermos isso. Imagina que o ser humano fosse um ser aquático, que vivesse nos mares, por certo teria outras representações linguísticas de compreensão e explicação do mundo. Logo, a linguagem é resultado de uma conjuntura de fatores (mundo, fisiologia, biologia, intelecção) que determinam a construção do pensar e as representações desse pensar.  
É muito válido nos perguntarmos se: “Nós entramos no mundo, ou o mundo entra em nós pela linguagem? ”. Wittgenstein dirá que o que eu tenho não é o mundo, mas a minha captação e compreensão do mundo segundo os meus recursos linguísticos construídos da minha captação do mundo. Fossem os recursos outros, outra seria minha captação e outros seriam meus recursos linguísticos e outro seria o mundo. Não podemos ignorar que a linguagem ganha representações que transcendem a materialidade criadora e ganha autonomia representativa de realidades existentes ou não, que são jogos de linguagem (manga de camisa, manga fruta, manga de zoar alguém ou a mandioca que é mandioca, aipim e macaxera). Para Wittgeinstein precisaríamos sair do mundo (a realidade que o estrutura) para falar sobre ele, pois por estarmos inseridos nele usamos as influências e construções dele sobre nós para falar dele, ou seja, por estarmos condicionados as estruturas dele ficamos limitados há essas estruturas para pensar. O mundo nos dá ou nos possibilita uma linguagem que usamos para falar dele e de nós nele, assim, nossas possibilidades de mundo estão no mundo, seria como querer definir um ovo estando condicionados a realidade do interior do ovo, sem interação ao seu exterior e de outras possibilidades de percepção e linguagem. Logo, o que Witggenstein postula é que a linguagem mesmo que sendo transcendente as nossas possibilidades representativas e linguísticas, ainda é uma linguagem condicionada ao mundo e as nossas possibilidades nesse mesmo mundo. Responderia à pergunta dizendo que nós entramos no mundo, mas é o mundo e suas possibilidades que nos estrutura para perceber e reconhecer a entrada dele e suas estruturas em nós.
Como já fora dito, nós entramos no mundo pela linguagem (fazemos o mundo saber o que há em nós), assim as palavras[2] – signos e símbolos – são ferramentas de representação do que vemos no mundo e como isso é no subjetivo de cada um. Um daltônico vê o mundo de maneira diferente do que a maioria, isso não significa que ele vê errado, e sim que a linguagem e as cores com que ele representa subjetivamente as coisas são diferentes. O daltônico vê o verde/vermelho/marrom, só que ele vê em uma configuração diferente e representa de maneira diferente. Isso nos leva a reflexão de que a experiência do mundo é anterior a representação da experiência do mundo, e que essa representação precisará de uma linguagem que conceitue a experiência para si e para os outros. Imagine que você veja um objeto pela primeira vez na vida (uma pedra, por exemplo) para conhece-lo precisa transportar o que vê para dentro de sua consciência e criar para si uma representação dele em si (quadrado/redondo/sólido/cinza/vermelho/pequeno/grande). Então, o que eu digo sobre uma coisa qualquer, tem a ver menos com ela e muito mais com a representação dela em mim e com a representação dela no meu interlocutor, logo, se não compartilharmos da mesma linguagem ou da mesma percepção, a comunicação poderá não ser possível ou não será exata.
A linguagem não é subjetiva, embora se torne, ela é intersubjetiva, ela apresenta e representa o mundo subjetivamente e depois o transcende. Uma pedra só é uma pedra após ser um fenômeno (de modo sensível) percebido por uma linguagem que a represente para si e que tenha sentido para os outros. Então, a representação do mundo, e, também o entendimento dele, é realizado por meio dos jogos de linguagens, que de modo simples faça o sólido ter o mesmo significado e representação para todos. Wittgensttein descreveu que a linguagem não é só um instrumento de descrição do mundo, pois embora ela seja uma ferramenta, ao ser apropriada intelectivamente, ela ganha significados próprios e autônomos as suas origens e até a transcendendo, como a palavra socorro, que pode ser um pedido de ajuda, um nome ou uma brincadeira de criança. Jogos de linguagem tem relação com o senso comum e as percepções e intuições do indivíduo, da maneira como se relaciona com as coisas e como essas relações estão para além da linguagem e quase que independentemente ganhando uma enormidade de significados possíveis entre os que a utilizam para conhecer, representar e transcender o mundo e a si mesmo.
A linguagem é viva, embora seja um ente no ser, ela se emoldura nas relações entre as pessoas e nas transformações do mundo ao longo do tempo. Um bom exemplo do jogo linguístico seria o jogo de xadrez. Temos as peças de xadrez e as regras de xadrez, são elas coisas físicas (as peças) e metafisicas (as regras), e temos as estratégias do jogo (xadrez, futebol, pôquer) que não estão mensuradas no jogo e em suas regras, pois estas dependem de uma leitura linguística que cada jogador faz das estratégias e modos de jogo do seu oponente. Sendo uma determinante para o a vitória no jogo uma boa leitura das expressões linguísticas (como no pôquer e no truco) do adversário. E, como a linguagem é viva ela está condicionada as relações que irão se estabelecer entre as pessoas com o seu meio e entre si nesse meio. Dizer que a linguagem é viva não pode ser confundido com a ideia de que ela tenha vida própria e autônoma. Ela é viva porque não está engessada no tempo e espaço, e sim, condicionada aos agentes e suas representações do mundo e de si por meio do uso dela.
O papel da filosofia é emitir esse olhar reflexivo sobre todas as nuances da comunicação e dos instrumentos para se realizar essa comunicação. Também é uma reflexão sobre o conhecimento e suas possibilidades de desenvolvimento atrelados aos instrumentos linguísticos/representativos da realidade. Logo, a filosofia é essa investigação continua do pensar humano, seja das suas possibilidades e limitações, seja dos meios e instrumentos utilizados para que ela aconteça. Nós poderíamos dar um passo adiante, subir mais um degrau intelectivo conhecendo e reconhecendo nossos saberes, suas fontes e processos de aprendizagem e quais as nossas possibilidades em nós de progredir cognitivamente para caminhos que nos levem há uma versão de nós mesmos que nos seja mais agradável em nós mesmos ou uma versão de nós mesmos que seja eficiente para nos proporcionar conquistas que achamos necessárias e úteis. E tudo isso é uso do processo de linguagem assimilada e projetada em nós e no mundo para que a nossa existência singular seja de fato feliz[3].        


[1] Veja mais em http://epistemepisteme.blogspot.com/ no texto Olhando o Mundo com um Olhar.
[2] Mas não somente elas, visto que a comunicação é primariamente, e, em muito superior a letras e números que possamos utilizar para a representar.
[3] Ou alguma outra expressão que possamos usar para significar um bem estar, bem viver e ser exitoso.