quinta-feira, 3 de maio de 2018

Corrupção Como Mal Social


Corrupção Como Mal Social

Somos células, músculos, fibras, carne, tecidos, órgãos, mitose e meiose, transmissões sinápticas, matéria que pensa e sente, aprende e ensina. Essa é a nossa existência fisiologicamente determinada e condicionada há uma realidade material que sujeita todo esse complexo biológico, determinando em muito o que ele seja e como se relaciona com o meio. Diante dessa existência primariamente biológica e fisiológica, precisamos refletir e entender o quanto o meio, natural ou social, influência na formação e definição do ser. E neste intuito, pensemos sobre a corrupção que é o desvio de um caminho desejado e determinado, que é o desvio de um comportamento tido como padrão e adequado. E, pensemos também sobre os fatores motivadores para a existência e permanência da corrupção em nosso contexto social, e, em nosso caso na nossa sociedade/país/nação.
Corrupção é o corrompimento algo, e corresponde à ideia de decomposição, que significa decompor negativamente uma realidade social, política, econômica, familiar, íntima ou outras. Na esfera das relações humanas está relacionado ao suborno, que é o ato de se corromper ética e moralmente em busca de um ganho fácil e rápido; corromper é oferecer algo para obter vantagem em negociata qualquer na qual se favorece uma pessoa e se prejudica outra (s); corromper é oferecer ou prometer vantagem indevida a qualquer pessoa para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar um ato adequado a uma situação que assim a demanda.
Segundo o professor Leandro Karnal corrupção é uma decorrência social: “A corrupção é um mal social, a corrupção é um mal coletivo”; aplicando na política diz: “Não existe governo corrupto em uma nação ética, e, não existe nação corrupta com um governo ético e transparente”. Assim, o comportamento das pessoas, independente da condição econômica, é resultado direto da sociedade em que este é socializado. Se uma criança Suíça agir com mais ética que uma criança brasileira não é mérito direto da criança, e sim do seu meio social, que a condiciona (sem tirar sua liberdade) a agir de tal e tal maneira. Segundo Karnal, entre nação/povo e governo há um espelhamento, uma prática comum e generalizada em que cada um em sua instância social (no nosso caso é da malandragem e esperteza) busca amealhar ganhos para o particular em detrimento do público. Claro que essa prática por parte do político é muito mais prejudicial para a sociedade do que um cidadão que despensa seu lixo em um terreno abandonado, ou instala uma TV a gato em casa. Contudo, a prática de ambos é corrupta e corrompe o convívio social.
Para Calil Simão[1], é pressuposto necessário para instalação da corrupção, a ausência de interesse ou compromisso com o bem comum. "A corrupção social ou estatal é caracterizada pela incapacidade moral dos cidadãos de assumir compromissos voltados ao bem comum. Vale dizer, os cidadãos mostram-se incapazes de fazer coisas que não lhes tragam uma gratificação pessoal". Há uma ideia imanente de que a corrupção está sempre presente, e de que é perda de tempo e imprudência (quando não dizem ser “burrice”) a prática ética. Por trás está a ideia de que o particular é mais importante que o público, que um bem particular é melhor que um bem público e comum, ignorando que “Toda vez que eu ganho no particular (corrupção) eu perco no público, e faço perderem junto comigo”.
Em Aristóteles a política é o espaço da discussão para o bem viver na pólis, viver em sociedade é praticar a arte de viver bem, e viver bem é a sabedoria de viver junto. Segundo Aristóteles, o que corrompe o homem é a falta de um fim último (finalidade) para as escolhas e as virtudes humanas, num contexto da pólis, no contexto da vida coletiva. Há um jogo de interesse particular, onde o que importa é se o meu “eu” está servido e satisfeito nem que seja às custas dos outros. Ao negar a convivência ética na pólis como espaço de discussão e como arte de bem viver – visto que o sumo bem só é possível nela – nega a si mesmo a possibilidade da melhor existência possível, o pessoal e singular não pode realizar o bem que o coletivo e plural pode proporcionar. O homem virtuoso em Aristóteles, não corrupto, é aquele que exerce a política com vistas ao bem comum.
  Exemplos de práticas com viés singular em detrimento das plural são comuns: “Não é raro ao brasileiro oferecer propina a agentes fiscalizadores e policiais para evitar multa, não dar uma nota fiscal, furar fila, comprar produtos falsificados, bater ponto para o colega, colar na prova da escola, fazer “gato” na TV a cabo/energia/água, alterar o peso e medida de produtos, exercer a profissão sem a devida observância aos Códigos de Ética profissional, sonegação de impostos, utilizar bens públicos para fins particulares ou em benefício de terceiros, entre outros.”[2]. Partindo para um plano geral e macro: “a corrupção prejudica as instituições democráticas, freia o desenvolvimento econômico e contribui para a instabilidade política. A corrupção corrói as bases das instituições democráticas, distorcendo processos eleitorais, minando o Estado de Direito e deslegitimando a burocracia. Isso causa o afastamento de investidores e desestimula a criação e o desenvolvimento de empresas no país, que não conseguem arcar com os "custos" da corrupção”[3].
 Analisando por um viés sociológico, nossa existência está condicionada há uma realidade material especifica, realidade que condiciona e molda (não absolutamente) a própria existência do ser, assim a existência é social e socialmente condicionada e determinada. Tal como explicita Pierre Bourdieu com o conceito de Habitus[4], segundo o qual a sociedade é assimilada na existência do indivíduo e se torna na natural e inevitável possibilidade de existir e ser, não permitindo que o indivíduo decida livremente sua ação e escolha, já que o indivíduo em si é uma decorrência de sua sociedade, e por consequência sua escolha, preferência e existência é primariamente social. Por isso, a corrupção é um derivativo social e é socialmente embutida no ser e tornada em hábito pelo mesmo. Por isso, o entendimento e superação da corrupção está no entendimento da sociedade e suas influências diretas e indiretas sobre o indivíduo, para que o mesmo se torne um agente consciente da sua ação e das influências externas sobre si, podendo assim consentir ou negar a presença e influência social sobre o próprio comportamento, no nosso caso evitar, fugir ou corromper com o habitus da corrupção e adquirir uma novo habitus ético.   
Uma nação ética é resultado de um comprometimento PESSOAL com o que é público, com o que é comum, com o que é plural, com o que pertence a todos. A corrupção é social, a ética é pessoal (primeiramente) e pública. A corrupção é anulada quando o “EU” não é mais valioso e premente que o “VOCÊ”, o “ELES” e o “NÓS”. A ética – a não corrupção – nos humaniza, nos convoca a sermos melhor do que o que fizeram conosco. A ética aposta na nossa condição e capacidade de fazer do plural um ganho maior e melhor que o singular e pessoal. E assim, abrimos mão do ganho fácil, rápido e oportuno por possiblidades melhores que juntos podemos obter.
Somos pensamento, ideia, determinação determinada, somos uma equação biológica/fisiológica/sináptica/cognitiva/emocional/social/cultural. A corrupção é uma semente germinante no seio pessoal como decorrência do cultivo social. Mas os frutos que essa semente poderá fornecer não são necessariamente uma derivação obrigatória da sociedade. No pessoal posso negar o coletivo corrompido para exercer um singular ético que produz sobre o coletivo uma condição mais positiva, autônoma, ética e justa, que por sua vez, poderá a longo prazo produzir um habitus cultural que faça da ética (o bem comum) uma determinação cultural tal qual a corrupção tem sido em nós até então.  



[1] Calil Simão é advogadoprofessorescritor e jurista brasileiro. Atualmente é Presidente do Instituto Brasileiro de Combate à Corrupção (IBCC), membro da Ordem dos Advogados, secção de São Paulo, professor associado do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional. 

[2] BIASETTO, Daniel; GÓES, Bruno. Corrupto é o outro. Jornal o Globo, São Paulo, Abril de 2015. Disponível em: Acesso em: 19 de abr. de 2016.
[3] DECOMTEC. FIESP. Relatório corrupção: custos econômicos e propostas de combate. Disponível em: Acesso em: 19 de abr. de 2016.
[4] Habitus fala da incorporação da interação com a sociedade pelo indivíduo. É a assimilação da sociedade pelo individuo, sendo essa assimilação tornada em carne, corpo (célula), pensamento, sentimento. É uma determinação inconsciente, muitas vezes, da sociedade sobre o ser do indivíduo.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

O Brasil não Presta

O Brasil Não Presta[1]: breve análise da não identificação como identificação nacional
É provável que a maior parte dos brasileiros já tenham dito: “O Brasil não Presta” ou alguma sentença similar. O fato é que vivemos em um Brasil que não vemos enquanto falamos de um Brasil que imaginamos que deveria ser como o idealizamos a partir de ideias ideais de nação. Tal ideia está presente no texto Escorraçando o Vira-latas[2]:
"Os brasileiros acham que o mundo todo presta, menos o Brasil, realmente parece que é um vício falar mal do Brasil. Todo lugar tem seus pontos positivos e negativos, mas no exterior eles maximizam os positivos, enquanto no Brasil se maximizam os negativos”.
Falamos de um Brasil que não é nosso, um Brasil que representamos em discursos e ideias, um Brasil que faz parte de nossa alienação social (representação de nossa realidade social sem auto reconhecimento na mesma), um Brasil que é nossa casa e nosso destino. Nos comentários do texto Escorraçando Vira-latas encontramos dezenas de comentários atacando o país (sua política, educação, povo, cultura) e dizeres como: “Quem pode suma deste lugar, faça o quanto antes” “vaza daqui, vão embora pra outro país”, “o pior do Brasil são os brasileiros”. São brasileiros falando de um Brasil que não aceitam, respeitam ou desejam. Como propor solução para uma nação/população que não se aceita sendo como é, e que, pior ainda, não se enxerga como responsável por seu país ser o que é. As soluções para tal problemáticas são problemáticas, visto que queremos usar o pé para cuidar/tratar do pé (usar as mãos seria mais eficiente). Vejamos alguns apontamentos da formação da psique brasileira segundo as observações de Contardo Calligaris em seu livro Hello, Brasil.
O Brasil em seu processo de formação não teve uma umtegração brasileira (a formação de um estado nacional), que seria o surgimento de uma nação com consciência de nação. Os diversos aspectos históricos contribuíram para isso, como a subjugação e genocídio dos índios, a integração forçada (e posterior rejeição social) dos negros africanos e a vinda de povos europeus e asiáticos em busca de conquistar no Brasil aquilo que não conseguiram em sua própria pátria. E estando aqui não construíram uma consciência e ideal nacional. Contardo aponta as diferenças existentes entre a independência americana e a independência brasileira, a primeira feita pela população local como representatividade de uma identificação existencial e nacional, e a segunda como um ato do colonizador/colono que tem por fundo seus próprios interesses (pessoais e familiares) e não os interesses de formação de um país, um Estado, uma nação, um povo, uma identidade e uma nacionalidade.
Então, o Brasil, presta ou não presta? O psicanalista Octavio Souza respondeu assim: “Este país não presta” talvez seja uma frase relacionada a um equívoco, como quando, ao tentarmos seduzir uma mulher que se mostra indiferente às nossas propostas, nós reagimos à desfeita protestando meio indignados, mas afetuosamente: “você não presta” (subtexto: “mas eu quero”[3]).
Para o colonizador o “Este país não presta” é sua frustração em não conseguir adquirir nele aquilo que perdeu em sua própria pátria, e o “Este país não presta” é para o colono o fracasso da umtegração, pois esse país não soube ser um pai, um um nacional capaz de assujeitá-lo (torná-lo sujeito). O “Este país não presta” é resultado de um olhar brasileiro alienado do que o Brasil é e do que imaginamos ou gostaríamos que ele fosse. Intuídos de um ideal nacionalista de diversas fontes externas ao Brasil, como se colocar o Brasil nas roupas dos Estados Unidos, Alemanha, França ou outro, pudesse dar-lhe mais dignidade.
Segundo o antropólogo Roberto DaMatta[4], é preciso fazer a distinção entre o brasil com letra minúscula que é o nome de um tipo de madeira de lei e de uma terra destinada a exploração, de Brasil com letra maiúscula, que designa um povo, uma nação, com conjunto de valores, escolhas e ideais de vida. E é precisamente isso que precisamos nos educar a ter como consciência, que existe um olhar, pensamento e ideia sobre o Brasil que não foi propriamente feita por brasileiros (ou pessoas que se sentissem brasileiras), mas esse olhar atravessou a história cultural de nossa formação e ainda povoa nossos pensamentos, levando-nos a pensar o Brasil como colonizador/colono ou como um estrangeiro com outras raízes culturais, os quais teriam razões culturais legitimas para assim pensar.
Tal qual Macunaíma, o herói sem caráter de Mario de Andrade, buscamos diariamente ser heróis da nossa própria existência tendo que subjugar a ética e o bom senso em nossa existência social. Ouvimos e aprendemos que o bom não é o certo, e que o certo é o que é bom, e que o bem pode as vezes se alinhar com os dois. E nessa ética aprendemos que o correto é se dar bem. Quem nunca passou vergonha ao afirmar que gostaria de fazer o certo mesmo que ao seu redor uma atitude incorreta fosse a adequada para todos. Apontamos o dedo para diversas esferas sociais e dizemos o que é certo e o que é o errado, e nesse julgamento valorativo excluímo-nos de valorar nossos próprios atos. Podemos falar daqueles que são ponto comum, os políticos, como representação de corrupção, os quais apontamos e condenamos, mas qual aluno aqui pode em sua consciência (de si para si) dizer que nunca colou, e que se fez foi por um motivo justificável. Assim, vivemos um complexo de Macunaíma, somos o herói que se vangloria não de seus atos éticos e heroicos, e, sim de sua auto elevação ao apontar as falhas e deslizes éticos dos outros.
É típico e originário do brasileiro falar mal do Brasil, pois praguejar sua nação é tão somente uma demonstração autêntica de brasilidade, de sangue tupiniquim nas veias, de assimilação e incorporação (psicológica, emocional, biológica e até fisiológica) cultural do Brasil em si. Quando se pragueja o Brasil se faz aquilo que é natural e cultural ao brasileiro. Se aprende desde cedo, em casa, na escola e em sociedade, a olhar o Brasil como o “país que não é” em vistas a exemplos de países que supostamente “são”. A complicação é que temos brasileiros falando de um Brasil que existe em suas cabeças a partir das idealizações que fazem em seus contatos ou conhecimentos de outros países/nações os quais supõem que o Brasil deveria ser igual. E opomos o Brasil que não existe com o Brasil que existe e fazemos o primeiro vencer o segundo, condenando o derrotado à execração e possível extermínio social de si no mesmo.
 “O Brasil não presta” entra na esfera intima/pessoal, cada um terá suas razões para dizer a favor da sentença ou contra a sentença. Se conseguirmos identificar as razões/motivações para o fazermos já teremos obtido um enorme progresso. Não pensaremos com pensamentos de outros (alienados), mas teremos nossas ideias, razões e motivações para amar ou rejeitar, elogiar ou criticar, aproximar ou afastar, se sentir brasileiro ou desejar o acréscimo de outra nacionalidade. Espero (de esperança) que fique explicito que o ato de questionar e discriminar a nação brasileira é uma característica natural da cultura nacional, e que, embora seja comum não precisa ser um destino comum de nossa própria formação intelectiva e existencial em nossa condição e consciência nacional ser um povo patriótico abortivo, que é rejeitar o útero que nos pariu ao rejeitar a pátria que nos pariu.



[1] As reflexões sobre o “um nacional” e a sentença “O Brasil não Presta” são expressões motriz do livro Hello, Brasil de Contardo Calligaris onde reflete a identidade do povo brasileiro forjada e decorrente de uma psique de colonizador e colono (uma tipificação ideal).
[2] O texto está disponível na internet em https://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/razoes-para-o-brasileiro-parar-de-falar-mal-do-brasil, porém, não consegui encontrar a autora.
[3] Hello, Brasil. Página 174. Editora Três Estrelas, 2017.
[4] O que faz do brasil, Brasil? Editora Rocco, 1986.