sexta-feira, 18 de outubro de 2019

O Lazer do Corpo na Sociedade do Corpo Negado

O Lazer do Corpo na Sociedade do Corpo Negado

Tudo virou mercadoria, até o pretenso momento de lazer ou de entretenimento de quem está na sala de sua casa

O que é o corpo humano? Um amontoado organizado de átomos, células e energia ou um receptáculo de uma existência superior condicionada há uma matéria limitante? Seja lá qual seja a definição que se deseje aceitar, o corpo ainda é o lugar de se ser um ser, é o lugar do ser. Pensar à vida e a existência é raciocinar sobre o lugar onde ela se acontece, ou seja, no corpo e depois do corpo. Para se pensar uma existência qualquer, até mesmo a de Deus, é preciso se dispor de uma entidade imagética que delineie para a mente um formato, um rosto, uma imagem referencial do ser que se quer perceber e interagir. E, por outro lado, temos a nós mesmos, seres corpóreos, que temos a nossa identidade como realidade de um lugar, de uma matéria, de uma existência. A leitura, entendimento e reflexão desse texto é feitura de uma possibilidade corporal. Foi o corpo que realizou para você e em você o processo de codificação de símbolos e signos que são representações dos pensamentos, ideias e impulsos que acontece em seu ser enquanto lê. 
Seguindo por uma perspectiva sociológica, o indivíduo social é um corpo social, ele é “átomo social”, matéria corpórea condicionada há estruturas que a precedem e a condicionam, a sociedade. Só que diferente de todas as outras espécies animais (corporais), o corpo humano e o ser humano nele têm em si a potencialidade de transcender sua própria formação e matéria e se condicionar a ela ou se refazer a partir dela ou em negação a ela. O corpo nasce social e é socialmente condicionado antes mesmo de se formar no útero de sua mãe. O corpo é um órgão independente do ser e o ser para ser um ser precisa condicionar o corpo as expectativas que o meio social tem sobre si. Assim, estudar e entender o ser humano é estudar os processos que levaram suas cicatrizes históricas (os processos de adestramento do corpo para a sobrevivência e para o convívio social) a se transformarem na segunda natureza do homem, processo pelo qual o que é histórico passa a ser visto como natural.
O psicoterapeuta Conrado Ramos no seu livro O Corpo Dominado no Mundo Administrado, fala dos mecanismos sociais de produção do ser (não pense os mecanismos como uma entidade intencional) que agem para que as experiências do corpo – prazer e dor – sejam negados e distorcidos em prol do fortalecimento do todo social, assim, o indivíduo aceita e reproduz as condições de sua própria exploração e limitação corporal, que é a negação do próprio corpo. Na psicologia social se analisa de forma crítica o processo terapêutico como um ajustamento aos processos de socialização que por si só são uma negação das realidades corporais do ser (seus desejos, vontades, necessidades). Ele aponta que muitas vezes as terapias psicológicas vêm o sofrimento como um defeito, uma falha, um problema de desajustamento das leis internas do funcionamento psíquico com as leis externas de ajustamento da sociedade, mas sem fazer uma relação objetiva dos processos de socialização por eles sofridos, colocando de lado a formação da entidade social que é resultado de uma continua castração corporal, que é a geradora desses processos psíquicos traumáticos no ser.  Friedrich Nietzsche tem o mesmo discurso a respeito do trato da sociedade para com o corpo, e faz uma crítica feroz a moralidade cristã como castradora da pulsão de vida (desejos e pulsões) que é negada em prol de um mundo ideal (céu, moralidade, bem superior) no porvir. Já para Michel Foucault é o corpo que ocupa um lugar no espaço e no mundo, e que dá ao indivíduo a visibilidade necessária aos poderes disciplinares (livro Vigiar e Punir), tornando-se o principal alvo das estratégias de controle social. O corpo, objeto de transformação histórica surgiu e evoluiu socialmente atrelado à dominação e, por isso, deve ser visto como uma fonte de resistência. Se o corpo é alvo predileto dos poderes disciplinares, pensar o indivíduo concretamente livre e autônomo é pensá-lo em função de sua relação com seu próprio corpo. Quando a lei era externa tinha poder limitado de formatação, mas quando foi interiorizada ganhou estruturas ilimitadas de determinação – culpa e medo – o sacrifício do trabalho e da negação do prazer serviu como compensação. Embora não seja o espelhamento das relações imediatas do homem com a natureza, o sacrifício exigido pelo trabalho e pela sociedade são experimentados como uma “segunda natureza”, tornando-se em componente do psiquismo de cada um. A dor e o sofrimento são corporais, assim como as satisfações e as felicidades, por isso, a psicologia social milita pela resistência frente às práticas de dominação do corpo e às ideologias que apagam ou deformam a consciência dessa dominação. Temos um ser que é formado socialmente e que nesse processo de formação sofre traumas na relação dialética entre o corpo e a sociedade, contudo, esses traumas são tidos como anomalias a serem combatidas, negando-se os efeitos dos aparelhos sociais de repressão por se entender que eles são necessários, essenciais e inevitáveis, e por isso, esses efeitos devem ser absorvidos e tratados, quando necessário, para um melhor ajustamento social.
O corpo é o centro da sociedade desde as estruturas sociais (como casas, escolas, hospitais), produção de bens (roupas, calçados, alimentos) e diversão (jogos, entretenimentos, artes, drogas) e outros. No capitalismo o corpo é a fonte de renda dos grandes mercados, é nele e por ele que se aposta quantias infindáveis de dinheiro. O capital criou, historicamente, não somente as condições de adequação da produção as necessidades individuais, mas criou também a necessidade individual de ajuste aos interesses da produção. E, por isso, temos uma dupla ação castradora sobre o corpo, a sociedade que o formata e o condiciona e as ideologias (religião, capitalismo e outras) que o manipulam e o direcionam a negar a si mesmo em nome de pretensos bens momentâneos ou futuros.     
A mutilação social do corpo é a mutilação existencial do ser, visto que um não é sem o outro e o outro não é sem esse um. Então temos uma equação entre o ser existencial e o ser social que vivem se digladiando no mesmo corpo para obterem seus interesses. Vivem como forças opostas em buscas de interesses por vezes antagônicos. A pressão da sociedade capitalista sobre os gostos e interesses do corpo, os interesses da religião sobre os usos do corpo em oposição a alma e o ser social (dono do corpo) que se acredita livre para viver e decidir sobre esse corpo, ignorando as determinações a priori sobre sua liberdade. Neste sentido, o corpo está posto na sociedade, ele a forma para si, enquanto ela se ocupa de ocupá-lo para si com seus interesses culturais. Espero que fique visível que há uma relação direta e indireta de oposição e composição entre corpo e a sociedade, que a sociedade se molda para suprir o corpo em suas necessidades ao mesmo tempo que busca conformar ele com seus interesses.
Espero estar claro que o corpo é o núcleo da sociedade, o ser que o habita só tem validade social se estiver adequado aos parâmetros determinados para o uso adequado dele. Assim, vale refletir sobre os conceitos de lazer/prazer, visto que não existe lazer fora do corpo e o lazer do corpo está atrelado a busca objetiva do trabalho social. É no interesse da sexta feira (happy your) que o indivíduo se submete há dias e horas de trabalho (sempre coisa do corpo), algumas vezes excruciantes, para com ele poder usar o restante do tempo em coisas agradáveis e prazerosas. Ora, a grande questão é que as definições do que é lazer/prazer para o corpo vem de fora. São em nossos dias determinações capitalistas de possibilidades de lazer/prazer disponíveis socialmente. Um exemplo claro são as tecnologias (tv., celular, games, Netflix) e as mudanças que tem causado nas práticas de lazer/prazer das novas gerações e também das anteriores. O corpo está localizado na sociedade e o interesse do seu proprietário é entre outras coisas um uso eficiente, contudo esse “eficiente” não é uma elaboração pessoal, mas sim uma escolha entre outras de um cardápio variado de possiblidades de “curtição”. O lazer/prazer do corpo está condicionado ao lazer do capital (possibilidade que o mercado econômico oferece em cada sociedade). Ludovico Silva escreveu um livro chamado Mais-Valia Ideológica onde observou que o sistema capitalista continua produzindo mais valor mesmo quando o trabalhador está em sua hora de descanso (happy hour), ao inculcar-lhe vontades e desejos enquanto assiste a novela, jornal, esportes ou enquanto usa seu console de jogos (impressionante como a propaganda está disseminada nos jogos), aplicativos de endereço com suas propagandas ou quando assiste ao futebol (repleto de propagandas dentro do campo, nos jogadores e nas transmissoras). Logo, o lazer/descanso se torna em oportunidade para continuar na cabeça do trabalhador a produção de uma mais valia ideológica que irá aprisionar o trabalhador (aprisionando-o continuamente em novos desejos e vontades) ainda mais em seu trabalho para buscar uma sobrevivência condicionada as novas necessidades. Esse controle social do gozo (termo cunhado por Lacan) é um resultado direto da renúncia que o indivíduo faz em prol da sociedade ao mesmo passo que precisa internalizar e transformar essa renúncia numa forma de satisfação, e nesse sentido a história da civilização é a história da introversão do sacrífico ou segundo Freud a história do homem é a história da sua repressão e da sua renuncia corporal.  
Acredito que não é possível uma libertação do corpo das estruturas sociais que o condicionam, pois, a sua formação como ser é corporal e social, não podendo ser negada sem negar o próprio ser. Precisamos aprimorar nossa consciência do que é o ser e dos processos que o envolvem socialmente, formando-o e condicionando-o. Entender as possibilidades de sua existência social, sabendo determinar o que é realmente necessário para sua formação e o que se torna por ser excessivo e danoso ao próprio corpo e ao ser que o habita. Logo, é mister fazermos essas análises da formação do ser do ser humano e da formação e transformação do seu corpo ao longo das centenas de milhares de anos de existência da espécie homo sapiens. Já que não somos só corpo e que temos no corpo um ser que não é um puro ser, e sim, um ser com múltiplas realidades psíquicas em si, da qual o corpo é o habitat, que são decorrências de processos históricos e progressivos de existência no próprio ser, devemos dar um passo adiante, que é o de encarar as realidades objetivas e subjetivas que formam o ser. Indo muito além das ideias religiosas e cientificas (com seus benefícios e malefícios para com à vida) sobre a vida, o corpo e o mundo e fazendo o que Nietzsche recomendou (sem precisar cair em seus radicalismos), buscando nosso homem além do homem com consciência de suas consciências e das origens e motivações das mesmas para assim obtermos o direito de ser o ser que realmente quer ser, fazendo o uso adequado de seu corpo em consonância com o ser que se determina a si mesmo (na medida do possível) mediante os processos históricos, sociais, religiosos, filosóficos, psíquicos, capitalistas e científicos (ou outros) que delineiam percursos autorizados. O corpo pode ser nossa existência melhor se a nossa existência for integral e integradora dele e de suas pulsões sem se negar ele e as necessidades sociais estabelecidas para seu bem e preservação. O importante mesmo é que pensemos no corpo (tenhamos ele em contas) na hora de viver a vida em suas múltiplas realidades e possibilidades, e, mesmo que não possamos lhe autorizar tudo social e economicamente, podemos o pensar ao menos nos nossos sins e nãos que podemos lhe atribuir.