O Lazer do Corpo na
Sociedade do Corpo Negado
Tudo virou mercadoria, até o
pretenso momento de lazer ou de entretenimento de quem está na sala de sua casa
O que é o corpo humano? Um amontoado organizado de átomos, células
e energia ou um receptáculo de uma existência superior condicionada há uma
matéria limitante? Seja lá qual seja a definição que se deseje aceitar, o corpo
ainda é o lugar de se ser um ser, é o lugar do ser. Pensar à vida e a
existência é raciocinar sobre o lugar onde ela se acontece, ou seja, no corpo e
depois do corpo. Para se pensar uma existência qualquer, até mesmo a de Deus, é
preciso se dispor de uma entidade imagética que delineie para a mente um
formato, um rosto, uma imagem referencial do ser que se quer perceber e
interagir. E, por outro lado, temos a nós mesmos, seres corpóreos, que temos a nossa
identidade como realidade de um lugar, de uma matéria, de uma existência. A
leitura, entendimento e reflexão desse texto é feitura de uma possibilidade
corporal. Foi o corpo que realizou para você e em você o processo de
codificação de símbolos e signos que são representações dos pensamentos, ideias
e impulsos que acontece em seu ser enquanto lê.
Seguindo por uma perspectiva sociológica, o indivíduo social é um
corpo social, ele é “átomo social”, matéria corpórea condicionada há estruturas
que a precedem e a condicionam, a sociedade. Só que diferente de todas as
outras espécies animais (corporais), o corpo humano e o ser humano nele têm em
si a potencialidade de transcender sua própria formação e matéria e se
condicionar a ela ou se refazer a partir dela ou em negação a ela. O corpo
nasce social e é socialmente condicionado antes mesmo de se formar no útero de
sua mãe. O corpo é um órgão independente do ser e o ser para ser um ser precisa
condicionar o corpo as expectativas que o meio social tem sobre si. Assim,
estudar e entender o ser humano é estudar os processos que levaram suas cicatrizes
históricas (os processos de adestramento do corpo para a sobrevivência e para o
convívio social) a se transformarem na segunda natureza do homem, processo pelo
qual o que é histórico passa a ser visto como natural.
O psicoterapeuta Conrado Ramos no seu livro O Corpo Dominado no Mundo Administrado, fala dos mecanismos sociais
de produção do ser (não pense os mecanismos como uma entidade intencional) que agem
para que as experiências do corpo – prazer e dor – sejam negados e distorcidos
em prol do fortalecimento do todo social, assim, o indivíduo aceita e reproduz
as condições de sua própria exploração e limitação corporal, que é a negação do
próprio corpo. Na psicologia social se analisa de forma crítica o processo
terapêutico como um ajustamento aos processos de socialização que por si só são
uma negação das realidades corporais do ser (seus desejos, vontades,
necessidades). Ele aponta que muitas vezes as terapias psicológicas vêm o
sofrimento como um defeito, uma falha, um problema de desajustamento das leis
internas do funcionamento psíquico com as leis externas de ajustamento da
sociedade, mas sem fazer uma relação objetiva dos processos de socialização por
eles sofridos, colocando de lado a formação da entidade social que é resultado
de uma continua castração corporal, que é a geradora desses processos psíquicos
traumáticos no ser. Friedrich Nietzsche
tem o mesmo discurso a respeito do trato da sociedade para com o corpo, e faz
uma crítica feroz a moralidade cristã como castradora da pulsão de vida
(desejos e pulsões) que é negada em prol de um mundo ideal (céu, moralidade,
bem superior) no porvir. Já para Michel Foucault é o corpo que ocupa um
lugar no espaço e no mundo, e que dá ao indivíduo a visibilidade necessária aos
poderes disciplinares (livro Vigiar e Punir), tornando-se o principal alvo das
estratégias de controle social. O corpo, objeto de transformação histórica surgiu
e evoluiu socialmente atrelado à dominação e, por isso, deve ser visto como uma
fonte de resistência. Se o corpo é alvo predileto dos poderes disciplinares,
pensar o indivíduo concretamente livre e autônomo é pensá-lo em função de sua
relação com seu próprio corpo. Quando a lei era externa tinha poder limitado de
formatação, mas quando foi interiorizada ganhou estruturas ilimitadas de determinação
– culpa e medo – o sacrifício do trabalho e da negação do prazer serviu como
compensação. Embora não seja o espelhamento das relações imediatas do homem com
a natureza, o sacrifício exigido pelo trabalho e pela sociedade são
experimentados como uma “segunda natureza”, tornando-se em componente do
psiquismo de cada um. A dor e o sofrimento são corporais, assim como as
satisfações e as felicidades, por isso, a psicologia social milita pela resistência
frente às práticas de dominação do corpo e às ideologias que apagam ou deformam
a consciência dessa dominação. Temos um ser que é formado socialmente e que
nesse processo de formação sofre traumas na relação dialética entre o corpo e a
sociedade, contudo, esses traumas são tidos como anomalias a serem combatidas,
negando-se os efeitos dos aparelhos sociais de repressão por se entender que
eles são necessários, essenciais e inevitáveis, e por isso, esses efeitos devem
ser absorvidos e tratados, quando necessário, para um melhor ajustamento social.
O corpo é o centro da sociedade desde as estruturas sociais (como
casas, escolas, hospitais), produção de bens (roupas, calçados, alimentos) e
diversão (jogos, entretenimentos, artes, drogas) e outros. No capitalismo o
corpo é a fonte de renda dos grandes mercados, é nele e por ele que se aposta
quantias infindáveis de dinheiro. O capital criou, historicamente, não somente
as condições de adequação da produção as necessidades individuais, mas criou
também a necessidade individual de ajuste aos interesses da produção. E, por
isso, temos uma dupla ação castradora sobre o corpo, a sociedade que o formata
e o condiciona e as ideologias (religião, capitalismo e outras) que o manipulam
e o direcionam a negar a si mesmo em nome de pretensos bens momentâneos ou
futuros.
A mutilação
social do corpo é a mutilação existencial do ser, visto que um não é sem o
outro e o outro não é sem esse um. Então temos uma equação entre o ser
existencial e o ser social que vivem se digladiando no mesmo corpo para obterem
seus interesses. Vivem como forças opostas em buscas de interesses por vezes
antagônicos. A pressão da sociedade capitalista sobre os gostos e interesses do
corpo, os interesses da religião sobre os usos do corpo em oposição a alma e o
ser social (dono do corpo) que se acredita livre para viver e decidir sobre
esse corpo, ignorando as determinações a priori sobre sua liberdade. Neste
sentido, o corpo está posto na sociedade, ele a forma para si, enquanto ela se
ocupa de ocupá-lo para si com seus interesses culturais. Espero que fique
visível que há uma relação direta e indireta de oposição e composição entre
corpo e a sociedade, que a sociedade se molda para suprir o corpo em suas
necessidades ao mesmo tempo que busca conformar ele com seus interesses.
Espero
estar claro que o corpo é o núcleo da sociedade, o ser que o habita só tem
validade social se estiver adequado aos parâmetros determinados para o uso
adequado dele. Assim, vale refletir sobre os conceitos de lazer/prazer, visto
que não existe lazer fora do corpo e o lazer do corpo está atrelado a busca
objetiva do trabalho social. É no interesse da sexta feira (happy your) que o indivíduo
se submete há dias e horas de trabalho (sempre coisa do corpo), algumas vezes
excruciantes, para com ele poder usar o restante do tempo em coisas agradáveis
e prazerosas. Ora, a grande questão é que as definições do que é lazer/prazer
para o corpo vem de fora. São em nossos dias determinações capitalistas de
possibilidades de lazer/prazer disponíveis socialmente. Um exemplo claro são as
tecnologias (tv., celular, games, Netflix) e as mudanças que tem causado nas práticas
de lazer/prazer das novas gerações e também das anteriores. O corpo está localizado
na sociedade e o interesse do seu proprietário é entre outras coisas um uso eficiente,
contudo esse “eficiente” não é uma elaboração pessoal, mas sim uma escolha
entre outras de um cardápio variado de possiblidades de “curtição”. O
lazer/prazer do corpo está condicionado ao lazer do capital (possibilidade que
o mercado econômico oferece em cada sociedade). Ludovico Silva escreveu um
livro chamado Mais-Valia Ideológica
onde observou que o sistema capitalista continua produzindo mais valor mesmo
quando o trabalhador está em sua hora de descanso (happy hour), ao inculcar-lhe
vontades e desejos enquanto assiste a novela, jornal, esportes ou enquanto usa
seu console de jogos (impressionante como a propaganda está disseminada nos
jogos), aplicativos de endereço com suas propagandas ou quando assiste ao
futebol (repleto de propagandas dentro do campo, nos jogadores e nas transmissoras).
Logo, o lazer/descanso se torna em oportunidade para continuar na cabeça do
trabalhador a produção de uma mais valia ideológica que irá aprisionar o
trabalhador (aprisionando-o continuamente em novos desejos e vontades) ainda
mais em seu trabalho para buscar uma sobrevivência condicionada as novas
necessidades. Esse controle social do gozo (termo cunhado por Lacan) é um
resultado direto da renúncia que o indivíduo faz em prol da sociedade ao mesmo
passo que precisa internalizar e transformar essa renúncia numa forma de satisfação,
e nesse sentido a história da civilização é a história da introversão do sacrífico
ou segundo Freud a história do homem é a história da sua repressão e da sua
renuncia corporal.
Acredito
que não é possível uma libertação do corpo das estruturas sociais que o
condicionam, pois, a sua formação como ser é corporal e social, não podendo ser
negada sem negar o próprio ser. Precisamos aprimorar nossa consciência do que é
o ser e dos processos que o envolvem socialmente, formando-o e condicionando-o.
Entender as possibilidades de sua existência social, sabendo determinar o que é
realmente necessário para sua formação e o que se torna por ser excessivo e
danoso ao próprio corpo e ao ser que o habita. Logo, é mister fazermos essas análises
da formação do ser do ser humano e da formação e transformação do seu corpo ao
longo das centenas de milhares de anos de existência da espécie homo sapiens. Já
que não somos só corpo e que temos no corpo um ser que não é um puro ser, e
sim, um ser com múltiplas realidades psíquicas em si, da qual o corpo é o habitat,
que são decorrências de processos históricos e progressivos de existência no próprio
ser, devemos dar um passo adiante, que é o de encarar as realidades objetivas e
subjetivas que formam o ser. Indo muito além das ideias religiosas e
cientificas (com seus benefícios e malefícios para com à vida) sobre a vida, o
corpo e o mundo e fazendo o que Nietzsche recomendou (sem precisar cair em seus
radicalismos), buscando nosso homem além do homem com consciência de suas consciências
e das origens e motivações das mesmas para assim obtermos o direito de ser o
ser que realmente quer ser, fazendo o uso adequado de seu corpo em consonância com
o ser que se determina a si mesmo (na medida do possível) mediante os processos
históricos, sociais, religiosos, filosóficos, psíquicos, capitalistas e científicos
(ou outros) que delineiam percursos autorizados. O corpo pode ser nossa existência
melhor se a nossa existência for integral e integradora dele e de suas pulsões sem
se negar ele e as necessidades sociais estabelecidas para seu bem e preservação.
O importante mesmo é que pensemos no corpo (tenhamos ele em contas) na hora de
viver a vida em suas múltiplas realidades e possibilidades, e, mesmo que não possamos
lhe autorizar tudo social e economicamente, podemos o pensar ao menos nos
nossos sins e nãos que podemos lhe atribuir.
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