domingo, 16 de outubro de 2016

Estrutura do Pensamento Sociológico de Pierre Bourdieu

“Os circuitos de consagração social são tanto mais eficazes quanto maior a distância do objeto consagrado”

Estrutura do Pensamento Sociológico de Pierre Bourdieu

Certamente o sociólogo Pierre Bourdieu é um dos mais importantes sociólogos do século XX, e trouxe imensas colaborações para compreendermos nosso tempo atual, nossa sociedade atual. Ao mesmo tempo em que busca desmistificar muitos olhares totalizadores e determinadores de condições sociais como naturais por vias biológicas, de competências, de talentos natos e familiares. 
Uma busca central presente em sua obra é a sua superação da dicotomia entre subjetivismo e objetivismo no que tange o olhar sobre a sociedade. “Ele acreditava que qualquer uma dessas tendências, tomadas isoladamente, conduz a uma interpretação restrita ou mesmo equivocada da realidade social”. Para isso desenvolve sua teoria conceitual de habitus, que procura evitar essa tendência cientifica. Habitus se refere à incorporação de uma determinada estrutura social pelos indivíduos, influindo e condicionando seu modo de sentir, pensar e agir, de tal forma que se inclinam a confirmá-la e reproduzi-la, mesmo que quase sempre de modo inconsciente. No cerne do seu conceito de habitus está que os condicionamentos materiais e simbólicos agem sobre nós (sociedade e indivíduos) numa complexa relação de interdependência. Podemos até dizer que ele tem uma concepção relacional e sistêmica do social, ou seja, a estrutura social é vista como um sistema hierarquizado de poder e privilegio, determinado tanto pelas relações materiais e econômicas (salario, renda) como por relações simbólicas (status) e culturais (educação e escolarização) entre os indivíduos. Nesse sentido a diferença de localização e condição nessa estrutura social deriva da desigual distribuição de recursos e de poderes[1]. Nesse sentido a posição de privilégio ou não privilégio ocupada por um individuo ou um grupo, é definida de acordo com a quantidade e volume de capitais presentes na mesma em sua trajetória social. E é esse sistema social e cultural (de composição material, simbólica e cultural) presente no individuo, na sua formação, desde sempre ou assimilado no decorrer de sua história, que forma nele um habitus, que é um condicionamento mental, corporal, social e cultural.
Para ilustrar, em seu trabalho Anatomia do gosto, ele conclui que o mesmo não se trata de uma questão da esfera pessoal e sim coletiva, o que ele denomina de a produção do gosto cultural. O gosto e as práticas de cultural de cada um de nós são resultados de um feixe de condições específicas de socialização. É nesta análise, a história das experiências de vida dos grupos e indivíduos, que podemos apreender a composição de gosto presente nos mesmos. Esse capital cultural incorporado, determinante do gosto cultural, é uma dimensão do habitus de cada um, que é uma predisposição a gostar de determinados produtos da cultura, como filmes, livros ou música, como tendências desenvolvidas em cada um de nós, incorporada e que supõe uma interiorização e identificação com certas informações, saberes, estilos, lugares, comportamentos, alimentos, etc. nesse sentido, Bourdieu põe em discussão uma das maiores certezas da vivência social, a de que gosto não se discute. Ao contrario, gosto se discute sim, visto que não é ele uma propriedade inata dos indivíduos, visto que o gosto é produzido e é resultado de um feixe de condições materiais e simbólicas (os capitais) acumulados no percurso de nossa trajetória social e educacional. Nestes termos, o gosto que se adquire, é resultado de diferenças de origem e de oportunidades sociais, e deve ser pensado e entendido a partir de tal concepção. Perceber isso é importante porque os gostos são qualificados e classificados, nesse sentido perceber as distinções do gosto cultural é importante, porque eles revelam ou refletem uma diferença social, uma ordem injusta em que as diferenças de cultura são transubstanciadas em diferenças entre bom e mau gosto, sendo o bom gosto pertencente há uma classe e o mal há uma classe inferior ou antagônica. Tomemos como exemplo sua análise sobre a Educação.
“Nada é mais adequado que o exame para inspirar o reconhecimento dos veredictos escolares e das hierarquias sociais que eles legitimam”
Na educação todas as relações educativas e socializadoras são relações de comunicação. Isto é mensagem comunicativa, ou mais propriamente o conjunto de regras culturais disponibilizadas pela escola, sobretudo aquelas relativas às artes eruditas ou à cultura letrada que dependem da posse prévia de códigos de apreciação. A sensibilidade estética, a capacidade de assimilar e se identificar com um objeto artístico dependem fundamentalmente do acesso e, sobretudo, de um aprendizado prévio de códigos e instrumentos de apropriação, isto é, uma sensibilização anterior, normalmente conquistada no seio familiar. Em uma sociedade hierarquizada e injusta como a nossa, não são todas as famílias que possuem a bagagem culta e letrada para se apropriar e se identificar com os ensinamentos escolares. Dentre eles, os de origem social superior, terão certamente mais facilidade do que outros, pois já adquiriram parte desses ensinamentos em casa. Para Bourdieu, existiria uma aproximação e uma similaridade entre a cultura escolar e a cultura dos grupos sociais dominantes, pois estes há muitas gerações acumulam conhecimentos disponibilizados pela escola. Nesse sentido, o sistema de ensino que trata a todos igualmente, cobrando de todos o que só alguns detêm (a familiaridade com a cultura culta), não leva em consideração as diferenças de base determinadas pelas desigualdades de origem social. Ele detecta então um descompasso entre a competência cultural exigida e promovida pela escola e a competência cultural apreendida nas famílias dos segmentos mais populares. Em outros termos, o sistema escolar em vez de oferecer acesso democrático de uma competência cultural específica para todos, tende a reforçar as distinções de capital cultural de seu público. E assim, o sistema escolar limitaria o acesso e o pleno aproveitamento dos indivíduos pertencentes às famílias menos escolarizadas, pois cobraria deles os que eles não têm, um conhecimento cultural anterior necessário para se realizar a contento o processo de transmissão de uma cultura culta. Essa cobrança escolar foi denominada por ele como uma violência simbólica, pois imporia o reconhecimento e a legitimidade de uma única forma de cultura, desconsiderando e inferiorizando a cultura dos segmentos populares. E nesta ótica podemos entender que essa violência simbólica significa a exclusão social de quaisquer outros termos não correspondente há uma cultural especifica e seus capitais (econômic0, social, escolar), o que desvela a meritocracia educacional como uma falácia presente ainda hoje nos sistemas de avaliação (Enem, Vestibular).
“Não há democracia efetiva sem um verdadeiro poder crítico”
Sobre a vivência em sociedade Bourdieu vai apontar a limitação cultural (capital de pertencimento ou de posse) como um delimitador da condição de atuação social, política e democrática de um indivíduo. Por exemplo, a condição da mulher na sociedade, ou a violência contra ela tão comum na história e na maior parte das sociedades e culturas. Segundo ele, essa dominação masculina se mantém não só pela preservação de mecanismos sociais (machistas), mas pela absorção involuntária, por parte das mulheres, de um discurso conciliador, machista e opressor. Na formação do habitus[2], a produção simbólica – resultado das elaborações em áreas como arte, ciência, religião e moral – constitui o vetor principal, porque recria as desigualdades de modo indireto, escamoteando hierarquias e constrangimentos. Todas as ferramentas de poder são essencialmente arbitrárias e masculinizadas, mas isso não costuma ser percebido. É necessário que os dominados, neste caso as mulheres, as percebam como legítimas justas e dignas de serem utilizadas. Nestes termos, a violência contra a mulher é tão comum em nossa sociedade porque a mesma é legitimada pela própria condição de socialização da mulher nas estruturas sociais. A violência contra a mulher é comum e presente desde a infância mais primeva. A fragilização do ser feminino e as restrições físicas, sociais e psíquicas são uma estruturação social de uma condição de subordinação e naturalização (habitus) da opressão e inferioridade de seu ser.
Ampliando a questão, as estruturas sociais serão legitimadoras das condições que legitimam a condição de quem já está legitimado socialmente no poder. O que significa que a construção social e teórica, elaborada pelos legitimados para isso, será de reforçar a condição dos legitimados, ou seja, socialmente todos irão estudar e trabalhar para ser um legitimado e se tornar mais um legitimador dessa condição social (também chamada de violência simbólica, por Bourdieu).
Em síntese, com os instrumentos teóricos que criou, Bourdieu afastou de suas análises a ênfase central nos fatores econômicos – que caracteriza o marxismo – e introduziu, para se referir ao controle de um estrato social sobre outro, o conceito de violência simbólica, legitimador da dominação e posto em prática por meio de estilos de vida. Isso explicaria por que é tão difícil alterar certos padrões sociais. O poder exercido em campos[3] como a linguagem, por exemplo,  é mais eficiente e sutil do que o uso da força física propriamente dita.





[1] Recursos e poderes diz respeito ao capital econômico (renda, salários, imóveis), o capital cultural (saberes e conhecimentos reconhecidos por diplomas e títulos), o capital social (relações sociais que podem ser revertidas em capital) e também o capital simbólico (prestigio e honra)
[2] Saberes inscritos no ser social e culturalmente sem uma consciência dessa inscrição e que tem força preponderante, visto que é saber que vira carne, saber corporificado.
[3] Campos sociais é a divisão da sociedade em áreas de poder que tem forte atuação dentro de suas estruturas, acadêmico, econômico, médico, militar, politico e outros. 

11 comentários:

  1. Caro professor, nós alunos da escola Juventina Marcondes Domingues de Castro do 3°C adoramos suas aulas, mas esses textos enormes que o senhor passa está nos deixando com dor de cabeça, por favor ressuma o texto na sala de aula para nós, de preferencia só falando sem escrever ficaríamos todos muito gratos.

    Atenciosamente, Suelis sua aluna preferida.

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    1. eu particularmente descordo de vc. o professor teve que tirar o texto do zero e vc só tem que entender, e vc não consegue? tenha brio meu amigo.

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    2. Antes de "descordar" de alguém, tenha firmeza em seus argumentos, e não deixe que Clóvis diga por você.

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  2. em que livro de Bourdieu ele faz uso da frase: "Os circuitos de consagração social são tanto mais eficazes quanto maior a distância do objeto consagrado" ??

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    1. “La Misere du Monde” de 1993

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    2. Li por inteira a obra Miséria do mundo e não encontrei a citação. A frase mais próxima, mas que obviamente não é a a mesma, está na p. 592
      "O modo de ser mantém com o campo uma relação de solicitação mútua e a ilusão é determinada desde o interior a partir das pulsões que impelem a investir-se no objeto; mas também desde o exterior, a partir de um universo particular de objetos socialmente oferecidos ao investimento"

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  3. Professor, eu sugiro que passe vídeos para a turma que não gosta de ler e, como exemplo, proponho o seguinte vídeo:

    https://youtu.be/hChN2CBr7TQ

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  4. Nó! O sujeito mastiga o negócio e a pessoa acha o texto enorme. Vá ler mais projeto de acadêmico.

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  5. Interessante a correlação entre a visão de Bordieu e Nietzsche no que se refere a como a classe dominante se encarrega de estabelecer relações de sentido, e deste modo, se vale da linguagem como instrumento de poder.
    Também é perceptível como a estrutura do pensamento sociológico de Bordieu viria a influenciar Byung Chul-Han em seu excelente "O que é poder?", principalmente no que se refere à proporcionalidade direta entre sutileza e eficiência do poder.
    Grato pelo texto, muito esclarecedor e didático.

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