terça-feira, 28 de novembro de 2017

A Crítica da Cultura na Filosofia de Nietzsche e Freud

A Crítica da Cultura em Nietzsche e Freud
“O homem é uma corda atada entre o animal e o além do homem – uma corda sobre o abismo” (Nietzsche)
“Os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que apenas se defendem quando atacadas” (Freud)
A Sociedade, que é a associação dos homens para um melhor viver e conviver, e a Cultura, que é toda uma produção objetiva e subjetiva produzida pelos homens nessa associação, não são coisas naturais ao homem, mas, antes são uma complementação necessária para que a existência em comunidade seja possível. E, como não é natural, ou seja, inevitável que exista, ou inevitável que exista como existe, ela sofrerá reflexões, revisões e transformações no decorrer da história. O termo “crítica” tem esse sentido, de abrir-se para refletir e pensar sobre a coisa (sociedade/cultura) o que é, porque é, como veio a ser e se será o que é ou se será um outro é.
Wilhelm Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Sigismundo Schlomo Freud (1856-1939) são propositores de uma abordagem da Sociedade e de uma percepção da vida como formação cultural, e porque cultural, também repressora. O indivíduo é, segundo eles, uma formação do meio. E por ser uma formação do meio é preciso, para entendê-lo, estudar a formação do meio que o forma em todos os seus aspectos existenciais.
Em o Nascimento da Tragédia (1871), Nietzsche reflete sobre a influência direta que a filosofia e o pensamento grego realizam sobre as formações existenciais humanas, e aponta as influências objetivas da subjetividade do pensamento grego nas sociedades em que se faz presente. Quando reflete sobre o ideal apolíneo e o ideal dionisíaco, traz à tona o dinamismo e o jogo de forças que orientem a vida humana, forças que foram separadas pela civilização, sobrepondo uma sobre a outra, e nesse ato abafando uma das dimensões naturais do existir humano. Apolo é o deus da beleza, da proporção, da harmonia e da serenidade; enquanto que Dionísio é deus da embriaguez, da desordem, da paixão. Segundo Nietzsche, a Filosofia Grega inicia um processo de decadência, ao afirmar certos valores (Apolíneos) como superiores a outros (Dionisíacos), pois nega-se aspectos naturais e constitutivos do próprio ser do humano, aspectos negativos próprios da condição humana como é sofrimento, imperfeição, dor, morte. O cristianismo, segundo Nietzsche, é uma filosofia/ideologia de continuidade ao pensamento grego, que também reforça a busca de um outro mundo (Apolo/céu) em detrimento deste mundo (Dionísio/terra). A crítica de Nietzsche a filosofia socrática-platônica-cristã visa questionar os valores que sustentam nossa cultura, pois esses valores subjugam o humano de si mesmo, e rouba-lhe aspectos fundantes e fundamentais do seu ser (o Dionisíaco e suas características apontadas acima). Suas críticas procuram perfazer a condição humana como aquela que cria valores e se submete aos mesmos, e que se tal se permitir filosoficamente uma outra reflexão filosófica (que inclua os aspectos apolíneos e dionisíacos dos humano) poderá realizar a seu favor uma transvaloração de todos os valores.
Já para Freud em suas reflexões sobre a cultura e a natureza humana (O Mal Estar na Civilização), mostra que não pode haver cultura e civilização sem repressão. O humano é um resultante do processo social e cultural, só que esse mesmo processo formador o impinge de limitações, bloqueios e dilacerações do seu ser. Sobre isso, Freud faz referências diretas as teses de Hobbes sobre o homem, em que esse seria paixão e desejo, que significa que o homem não reluta em destruir ou subjugar outros homens quando estes se apresentam como obstáculos a obtenção de seu desejo.
Poderá parecer estranho a alguém que não tenha considerado bem estas coisas que a natureza tenha assim dissociado os homens, tomando-os capazes de se atacarem e destruírem uns aos outros. E poderá portanto talvez desejar, não confiando nesta inferência feita a partir das paixões, que a mesma seja confirmada pela experiência. Que seja portanto ele a considerar-se a si mesmo, que quando empreende uma viagem se arma e procura ir bem acompanhado; que quando vai dormir fecha as suas portas; que mesmo quando está em casa tranca os seus cofres; e isto mesmo sabendo que existem leis e servidores públicos armados, prontos a vingar qualquer injúria que lhe possa ser feita. Que opinião tem ele dos seus compatriotas, ao viajar armado; dos seus concidadãos, ao fechar as suas portas; e dos seus filhos e criados, quando tranca os seus cofres? Não significa isso acusar tanto a humanidade com os seus atos como eu o faço com as minhas palavras? (Thomas Hobbes, Leviatã).
Freud aponta que os esforços empreendidos na manutenção de nossa civilização vêm resultando num estado de coisas que o indivíduo é incapaz de tolerar sem se tornar profundamente neurótico[1]. O embate entre essas forças vitais e as forças de destruição, existentes no humano, são a contradição central da cultura e da sociedade contemporânea. É preciso conviver para se realizar, mas é a convivência a castradora dos impulsos vitais.
Freud ainda nos traz um outro apontamento crucial para nosso entendimento da condição humana, que é contraditória e paradoxal (visto que precisa da sociedade para existir, mas tem nela a limitação de suas possibilidades de plena realização), o homem age movido por paixões e desejos inconscientes, só que o homem perdeu no decorrer da história os seus referenciais ideológicos e transcendentais. Freud apontará que a existência humana foi golpeada em três níveis (cosmológico, biológico e psicológico). O golpe cosmológico em veio com Nicolau Copérnico, que retirou o humano do centro do universo; já o golpe biológico veio com Charles Darwin, pois este apontou o humano (homo sapiens) como a resultante dos processos de seleção natural e mutação genética. E em terceiro, o golpe psicológico, no qual o próprio Freud apontou que o ego (eu) não é dono de sua própria casa, e assim despedaçou a crença filosófica no poder da razão humana como suficiente para determinar a própria existência do homem. A razão não é soberana, ela é resultante de um processo complexo e paradoxal.
Podemos ver nesses apontamentos reflexivos sobre a cultura feitos por Nietzsche e Freud, que a cultura é um derivativo, e que ela não é absoluta e não está fechada. Assim, é preciso que se faça uma reflexão da sua construção e da sua estrutura estruturadora para que se identifique as condicionantes que a formaram e em um segundo momento para entender a sua composição, e, assim, compreender o que é e aprender como se relacionar com ela em sua forma e estrutura. O que os dois autores propõem é que a cultura (o modo como vivemos em nossos valores e estruturas biológicas e psicológicas) é uma formação realizada por nós, e como tal deve ser revisitada em sua formação e estrutura para que se verifique que a mesma é possibilitadora da melhor existência possível, visto que foi criada com esse pressuposto. Assim, a perspectiva é de criar uma consciência da própria estrutura da consciência, visto ser a consciência determinada pela estrutura, e assim se permitir refletir a respeito da mesma, para aceitá-la, rejeitá-la ou mesmo repensá-la em novas estruturas.



[1] Freud define a neurose como a expressão de um conflito entre os desejos do nosso inconsciente. Para ele, certos impulsos inconscientes são incompatíveis com a realidade exterior ou são impossíveis de serem concretizados, desenvolvendo-se no sujeito um intenso estado de ansiedade e mal estar geral.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Felicidade: algumas ideias e percepções Aristotélicas

Felicidade: Algumas Ideias e Percepções Aristotélicas
“A felicidade é tema normalmente presente provavelmente por sua natural ausência”
Temos a felicidade como tema rotineiro nos livros, jornais, novelas, filmes, seriados e outros. A felicidade tem um fundo presencial em nosso cotidiano, em nossas escolhas diárias, desde a mais simples (o que colocar no prato) a mais complicada (que faculdade cursar, quando casar), e esse tema tão essencial à existência e história humana, presente para cada um de nós, foi também tema dos grandes filósofos da história humana (também dos clássicos Sócrates, Platão e Aristóteles), vejamos como Aristóteles concebia essa que é a dádiva oculta e onipresente em nossa cotidiana vivência, façamos isso refletindo a partir do seu livro I da Ética a Nicomâco.
Comecemos dizendo que na compreensão teleológica de Aristóteles, no livro supracitado, um bem maior é a finalidade de bens comuns e cotidianos, e é a felicidade um fim último, a felicidade é um bem supremo que todos desejam. A Felicidade como fim (finalidade) é o que todos desejam viver. As conquistas e realizações são meios para tal. O que seria essa felicidade? Numa abordagem primária seria “o encaixe de si no melhor de si no mundo e no cosmo em sua própria existência”.
 Felicidade é, também, uma consequência de uma existência equilibrada e equânime, que é a melhor, a mais nobre e a mais aprazível coisa do mundo, e esses atributos não devem estar separados como na inscrição existente em Delfos “das coisas, a mais nobre é a mais justa, e a melhor é a saúde; porém a mais doce é ter o que amamos”. Felicidade é a justa medida nem excesso nem falta.
Qual o melhor tipo de vida? (Se é que há um) O que é felicidade? É melhor ser feliz ou fazer o bem ou o que é certo? Em Ética a Nicomâco, Aristóteles consagrou a ética do meio termo. Instruiu o seu filho ao prazer e o estudo como melhor meio de vida, visto que a especificidade do homem é ser um animal racional. Para Aristóteles, como Sócrates e Platão, a virtude é a condição em que o homem é senhor de si, tem autocontrole (autarquia). O homem virtuoso é o homem que é senhor e mestre dos seus desejos. A excelência é obtida pelo exercício habitual do caráter. As qualidades do caráter levam a identificar os extremos e a justa medida. Aristóteles dirá quem entre a covardia e audácia, mais necessário e virtuoso é a coragem. Mais aprazível que a belicosidade ou a bajulação, é a amizade e suas consequências. Mais útil que a indolência ou a ganância, está a ambição, que é a chave mestra para a conquista de si e dos próprios quereres. Felicidade está em consonância com o lema grego “Nada em excesso”.
No livro I Aristóteles elenca diversas condicionantes para um viver virtuoso e feliz. Ele elenca, por exemplo, três tipos principais de vida: a vida apenas na fluência de prazeres; a vida segundo as honrarias e benesses da vida política e a vida contemplativa. No que se refere à vida reduzida à obtenção de prazeres, Aristóteles a considera bestial e escrava; quanto à vida pública, considera a honra como concessão do público (o que não é bom). E a vida contemplativa que tem como prática o conhecer-se e a seu telos e a prática da virtude, ambas como condição necessária para a realização da felicidade (eudaimonia[1]).
Já em relação à ética Aristóteles diz que o objetivo da mesma é a obtenção da felicidade (eudaimonia), mas esta sofre grande diferença quando tratada pelo vulgo (plebe, povo) ou pelos sábios, pois o vulgo compara a felicidade ao prazer, riqueza ou ostentação. Eles não conseguem perceber que acima dos bens imediatos há um bem subsistente e causa da bondade de todos os demais (a virtude e os fins existenciais). E para ambas há dois caminhos: o das ações para os princípios ou dos princípios para as ações, e o das ações como são exercidas por nós, o que exige conhecimento e hábito, esclarecimento e boa educação.
Para concluirmos essas reflexões sobre a ética, Aristóteles irá apontar que a felicidade é um instante de vida eudaimônica e teleológico, que é viver sendo quem é em harmonia com os próprios dons, talentos e potencialidades. É uma vida em manifesta excelência de si, em encaixe cósmico, em plenitude vital. Felicidade é a existência virtuosa e equilibrada no encaixe teleológico consigo mesma.



[1] Para Aristóteles, a eudaimonia significa atingir o potencial pleno de realização de cada um. A felicidade é a meta da vida humana, tudo o que fazemos tem como motivo principal a busca da eudaimonia, que é o encaixe ético ao cosmos.

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Modernidade Líquida

Modernidade Líquida
Para Zigmunt Bauman (1925-2017) entender os dias atuais é se inserir em um processo de reflexão que exige uma certa exclusão conceitual da realidade para a entender e só então atuar/dialogar/existir com uma certa noção de para onde ela está indo e como vamos nós com ela nesse seu destino, que de certo modo e maneira é nosso destino também. “A Sociedade é fruto direto e indireto da atuação do humano nela e sobre ela para fazer-lhe ser o que é”
Modernidade líquida é um conceito elaborado por Bauman para pensar e estudar a estruturação organizacional e relacional do mundo moderno e contemporâneo. Veremos que modernidade líquida não corresponde diretamente a pós modernidade, está relacionado mas não é igual. Modernidade Líquida é caracterizada pela fluidez das relações e do mundo contemporâneo. Modernidade Líquida é conceito sócio histórico de análise da realidade existencial humana surgida da ampla centralização no cientificismo e no capitalismo. Modernidade Líquida se contrapõe ao conceito de modernidade sólida, que se caracteriza pela fixidez/rigidez estrutural das instituições (família, escola, religião, comunidade, Estado), pois ela se caracteriza pela lógica agora, do consumo, lógica do gozo e da artificialidade, é a lógica do fluir para existir (mesmo que isso significa transformar as estruturações institucionais).
Karl Marx caracterizava a modernidade como o processo histórico que derreteria todas as instituições: “Tudo que é sólido desmancha no ar”. O filosofo alemão já preconizava que a estruturação social de seus dias significava o fim dos referenciais existenciais que significaria fazer da vida um projeto individual, que tinha por estrutura a própria condição material e econômica do sujeito, na qual fica alienado e subjugado, visto que perde de vez as possibilidades institucionais e estruturais de transformar a própria realidade. Essa existência, como projeto individual, é direcionada ao consumo, e tem por efeito transformar as relações sociais em mercadorias, que por sua vez, transforma a própria identidade pessoal/existencial/social em mercadoria. Ora, se o trabalho que visa a sobrevivência (modos de produção=motor da história) se torna cada vez mais fluído, líquido, se amoldando as necessidades de mercado em empregos temporários, trabalhos de meia jornada, trabalhos noturnos, trabalhos em casa (home office), especializações e adaptações profissionais; e consequentemente fazendo do trabalhador um ser fluído e sem identidade profissional[1]. O trabalhador fragmentado pelas relações de produção da própria sobrevivência irá se fragmentar ainda mais em suas relações de existência e convivência.
Para Zigmunt Bauman isso já ocorre. As relações pessoais contemporâneas são caracterizadas pelas conexões (que são plurais, frágeis, fluídas, desconectáveis sem perdas e custos). As conexões transformam e reforçam a existência do ser como mercadoria, que pode ser consumido e depois jogado no lixo (significa ser excluído por não ter mais utilidade). As conexões são frágeis porque os sujeitos lidam com um mundo de consumo e de opções para consumo. A existência se perfaz em usufruir de um cardápio com opções (pessoas) de consumo e curtição. Por exemplo, na modernidade líquida o sexo não é união. Sexo é curtição. Conexão sexual é a acumulação de sensações, acumulação de prazeres, acumulação de satisfações instintivas individuais sem muita responsabilidade e comprometimento com o outro.
Modernidade líquida não é um conceito análogo a pós modernidade. Modernidade líquida é um conceito crítico (analítico) da pós-modernidade. Para nosso autor, a pós modernidade é uma remodelação, uma reforma, no edifício da modernidade. Ela faz isso sem mexer em suas bases e estruturas (capitalismo). Reforma que reforça seu poder estrutural, mantendo a estruturação capitalista moderna e modificando as relações nessa estrutura social. Na “Pós” não há uma superação de nada, o que há é uma sequência continua da modernidade sólida para a modernidade líquida, com algumas características diferenciadoras, mas com o núcleo (estrutura) capitalista intocável. A proposta do capitalismo moderno era a de produzir mercadorias, agora a proposta do capitalismo pós moderno é de consumir mercadorias, mesmo que o sujeito se converta ele mesmo em uma.
O conceito “líquido” de Bauman cria ramificações conceituais (obras do autor) como “Modernidade Líquida”, “Medo Líquido”, “Amor Líquido”, “Vida Líquida”, “Vigilância Líquida”, “A Cultura no Mundo Líquido Moderno”, “Tempos Líquidos” e tantas outras que possam representar uma liquidez estrutural (oposição direta as sociedades sólidas ou fixas). Em “Amor Líquido”, por exemplo, trata da fragilidade dos laços humanos, das novas regras de relacionamento em que se prioriza a satisfação imediata em detrimento de qualquer projeto de vida ou respeito e reconhecimento pelo outro. A perda da qualidade das relações recompensada com uma busca de quantidades absurdas de parceiros. A quantidade de amigos que as pessoas costumam ter em redes sociais que são números que ultrapassam 300 ou 500 amigos, algo que seria irreal para uma convivência cotidiana de qualidade. As relações se desenvolvem com aquilo que já se tem, não com aquilo que ambos estão a fim de ter. Não se arrisca mais a amar sinceramente, pois isso significaria se entregar.
O que é preciso pontuar é que esse conceito de líquido não é somente resultado de uma ação estrutural histórica; não é, também, resultado negativo do processo de capitalização da sociedade e convivência humana. Liquido é o resultado direto da ação e determinação humana feita a partir das mudanças e realidades existências que se lhe apresentam, e das escolhas que faz mediante essa mesma realidade, e assim, sua realidade social, em seus aspectos positivos e negativos, é resultado direto de sua ação. E a solução para tal, se é que há, ou se é que seja coerente pensar em solução para com ela. Seria a de podermos compreender e entender seus processos históricos sociais de formação, pois assim já teremos a possibilidade de deliberar sobre a nossa própria existência nessa conjuntura social, o que já nos faz ser e viver melhor que a imensa maioria das pessoas que fazem o que todos fazemos, mas sem nenhuma consciência (ou muito pouca) de suas determinações existenciais.



[1] No mundo líquido não se trabalha “para aposentar”, mas busca-se o aprendizado permanente em diversos cargos de diversas empregas durante toda a carreira.

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Materialismo Dialético


Materialismo Dialético (Karl Marx)
O trabalho de Karl Marx (1818-1883) se fundamenta em analisar os mecanismos da sociedade capitalista, quais as condições históricas e sociais de sua produção e suas motivações transformadoras. Fundamentando suas ideias a partir dos conceitos dialéticos de Hegel (1770-1831), que o ajuda a construir sua concepção materialista e dialética da história. Pois para Marx a história não é uma força do espírito que conduz o mundo, e sim um elemento concreto no qual os seres humanos reais produzem e agem em meio as contradições sociais na qual constroem e transformam a realidade enquanto produzem a si mesmo. Em sua obra Ideologia Alemã, Marx formula uma crítica a filosofia idealista predominante, a qual explicava o mundo e o homem pelo autodesenvolvimento das ideias e da consciência, que ele questionava como falsa consciência ”Não veio à mente de nenhum desses filósofos procurar o nexo existente entre a filosofia alemã e a realidade alemã, o nexo entre a crítica e seu próprio ambiente material”, ele mostra que a filosofia e as ideias desenvolvidas em uma sociedade são inseparáveis da maneira como os homens produzem seus meios de vida em um determinado contexto histórico. “O idealismo explica a prática segundo a ideia, o marxismo explica a formação das ideias segundo a prática material” e assim, “Não é a consciência que determina a vida, mas é a vida que determina a consciência”, e por fim diz: “Ao contrário da filosofia alemã, que desce do Céu à Terra, aqui é da Terra que se passa para o Céu. Em outras palavras, não partimos do que os homens dizem, imaginam e representam[...] mas partimos dos homens como eles são na vida real” (Ideologia Alemã). Marx mostra que o homem transforma a si mesmo e a sociedade pelo trabalho e pelas relações sociais que estabelece com os outros, que a história é feita pela luta de classes sociais, por grupos contrapostos que disputam o mesmo espaço na sociedade. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe também dos meios de produção intelectual, “as relações legais e as formas políticas não podem ser explicadas por si ou como provenientes do assim chamado desenvolvimento geral da mente humana, mas, ao contrário, elas se originam das condições materiais da vida” (Contribuição à Crítica da Economia Política).
Marx desenvolve seu conceito filosófico materialista a partir, mas não somente, do filosofo materialista Ludwig Feuerbach (1804-1872), que desenvolveu sua filosofia para explicar as ideias como um processo natural e biológico da vida material, e assim, as ideias não passavam de reflexo das necessidades materiais dos homens. Já em Marx não serão apenas produtos naturais da realidade, mas fatos históricos, que por sua vez são fruto do trabalho e resultado da criação de um continuo processo histórico de sobrevivência. É o entrelaçamento dialético e consciente do sujeito e do objeto que forma a vida humana e social, a realidade material e a história feita pelos homens não podem andar separadas, que se determinam reciprocamente e assumem diversas formas ao longo do tempo e dos lugares. Por isso, para entender o pensamento dos homens e o subsequente processo de desenvolvimento dos mesmos, é preciso examinar “os modos de produção”, pois é nas forças produtivas (o dinheiro, as ferramentas, as máquinas, a ciência, a tecnologia, a mão de obra, a organização do trabalho) e as relações de produção (as expressões jurídicas, políticas, filosóficas, culturais que se estabelecem nos processos produtivos) que se realiza a estruturação do pensamento. Desse modo, as forças de produção (a estrutura material) e as relações sociais de produção (a superestrutura ideológica) são determinantes para todo o processo relacional e todo desenvolvimento ideológico e filosófico subsequente. As estruturas relacionais e existenciais determinam a existência da sociedade subjetiva e objetivamente. Por isso ele diz que os modos de produção que se seguiram na história da humanidade, e as subsequentes lutas de classes derivadas dele, é o que movimentou a história e todo o seu processo de infraestrutura e superestrutura. Em o Capital Marx busca a compreensão cientifica e a explicação da estrutura econômica da sociedade. Ao trabalhar o homem transforma a natureza, cria a si próprio e constitui um mundo humano e social (a vida de se constitui de elos biológicos, econômicos, sociais, políticos, culturais que produzem e reproduzem a si mesmos e criam socialmente os próprios meios de vida e existência humana). A filosofia de Marx é materialista, mas é também entrelaçada com a dimensão histórica e dialética, que produz e se reproduz na própria realidade material social.
A filosofia dialética (Hegel) permite entender o real com suas contradições, os movimentos, as lutas de forças opostas que geram as mudanças e a permanente superação da história. Conceito esse que segundo Marx “anda de cabeça para baixo. É preciso colocá-lo sobre os pés para descobrir o núcleo racional encoberto sob a envoltura mística”. A história e a dialética em Marx não evaporam no Espírito, mas se realizam na materialidade da vida humana e social das classes trabalhadoras que lutam contra o Capital (os burgueses e sua filosofia idealista). A filosofia de Marx não quer somente compreender a realidade social e histórica, mas também mostra seu movimento histórico continuo (determinismo histórico) e a transformação subsequente do mundo (a realidade social e econômica e seus processos de busca de sobrevivência). Processo que Marx caracterizava como filosofia da práxis (materialismo histórico dialético), que é o pensamento como parte integrante da realidade que se constitui como pensamento transformador, visto ser um pensamento derivado para realidade material, transformado pela mesma e transformador da mesma (O ambiente faz o homem tanto quanto o homem faz o ambiente). Por isso, não há sistemas econômicos, organizações sociais e ideias imutáveis, pois tudo é histórico, dinâmico, contraditório e superável. Também por isso, a filosofia não é uma atividade separada da realidade, mas uma atividade de transformação (ela é consequência da realidade e de suas contradições) que deriva das necessidades da própria realidade que a realizou, e Marx decreta: “Até agora os filósofos interpretaram o mundo de diferentes maneiras, o que importa é transformá-lo”. Não por menos que Karl Marx inaugura uma filosofia que é cientifica-concreta (sem ser positiva) e político-projetiva (ser idealista). Não por menos sua ação analítica histórica na qual postula que: “O sistema capitalista implantado pela burguesia produz imensas riquezas ao preço da violência, da disseminação da miséria e da devastação da natureza, esgotando as principais fontes de riquezas: a terra e o trabalhador”.
É desse preâmbulo que deveria partir a análise da produção filosófica, cientifica e econômica de Karl Marx. Analisar o conteúdo sem o seu contexto filosófico, ou analisar o conteúdo sem a intenção filosófica do autor, ou também, analisar o conteúdo por terceiros que o utilizam para legitimar uma ou muitas propostas filosóficas utópicas (marxismos) que o próprio autor não aceitava. Olhar Karl Marx e seu materialismo filosófico é olhar um homem histórico e sua busca de solucionar problemas da sua realidade social e econômica. Ele não parte de suposições meramente teóricas e sim de análises cientificas filosóficas de realidades sociais e economicamente estruturadas, e nós precisamos levar em conta tais realidades para pensar sua produção cientifica e filosófica. Isso seria usarmos do método materialista dialético para compreender as origens e motivações do processo de produção do materialismo histórico dialético. O diálogo com o autor e sua realidade social e econômica ajuda a entender a sua produção cientifica. Assim, Marx não é marxista. As filosofias marxistas não levam em conta a obra A Ideologia Alemã na qual apresenta a transformação histórica como um processo determinista material e não como um determinismo ideológico como proposto em muitas outras filosofias decorrentes de seu pensamento.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

O Bom Preconceito: o preconceito de se ter preconceitos

O Bom Preconceito: o preconceito de se ter preconceitos

Esse texto tem por intenção dialogar e expandir o tema do preconceito e suas múltiplas e paradoxais questões complicadoras do seu entendimento e abordagem. Usarei como referência central o texto/livro Em Defesa do Preconceito de Theodore Dalrymple, onde ele amplia a discussão do tema e lança luzes sobre o mesmo, e nos desafia a enfrentar esse tema tão arguto e complicado, e que nos convida a enfrentar nossos próprios preconceitos, o ato mais difícil de se executar.  
A primeira coisa que precisamos pensar é que o nosso norte passou a ser não ter preconceito nenhum. A ideia é de que sem preconceitos conviver é melhor, mas a ideia de que sem preconceito é melhor, é contraditória em si, visto que é preciso um pré-conceito para fazer isso. A conclusão de que sem preconceito temos uma convivência e existência mais livre e potencialmente melhor é contraditória, pois faz isso ser um preconceito. Também temos o ceticismo metafisico (nulidade dos valores ideais), que consiste em avaliar as implicações que determinam negativamente a forma de decidir e conduzir à vida  (negando-a). Porém esse ceticismo é uma armadilha, pois não avalia tudo, mas o que lhe convém. Avalia a partir dos próprios pressupostos não metafísicos, e assim não é cético, é seletivo. O estudo da história está sujeito ao pesquisador da história, e, esse estudo nos diz aquilo que queremos ouvir. Usamos a história para validar a nós mesmos ou o que esperamos encontrar ao pesquisar (os preconceitos já existentes). O estudo/pesquisa é uma reprodução do mundo, e tendemos a negativar o passado para legitimar o presente e produzir um preconceito validador do futuro. Olhando isso por uma corrente materialista podemos dizer que somos átomos morais a nos mover no vácuo, o que significa dizer que somos matéria/células/órgãos que apreende o mundo e atribuem valores a ele e que faz desses valores seus preconceitos para se relacionar com ele e com tudo que envolva sua existência nele.
Em todos os meios sociais (mídia, família, escola) temos visto a prática de uma pedagogia dita não preconceituosa, que significa não limitar a criança, não impor obstáculos ao seu desenvolvimento. Só que o que se ignora é que liberar a criança é não permitir a ela uma reflexão racional e sensata sobre o porquê de tudo ser como é, e não limitar, instruir, controlar, direcionar é castrar (limitar seu desenvolvimento). A criança não está livre de preconceitos apenas porque ficou livre dos preconceitos de seus pais, ela se tornará escrava de seus próprios preconceitos, e o pior é que esses preconceitos serão construídos sem orientação, sem a prática da vivência e experiência dos mais velhos. É preciso entender que a abstenção de se incutir preconceitos é geradora de efeitos muito piores do que fazê-los, ainda que fossem ou sejam feitos de maneira agressiva ou irracional, o fato de serem feitos é melhor do que não o serem. É preciso entender que o solo que sustenta o preconceito será sempre necessário, ainda que o preconceito seja alterado, para andar sobre o chão é preconceituosamente que se anda, e assim, o ideal é que haja consciência disso, que haja consciência para fazer isso.
Para prosseguir com a reflexão é preciso fazer uma definição do que seja Preconceito e quais as suas possíveis extensões. Uma compreensão geral de preconceito é entende-lo como um comportamento automático, um agir que de tão praticado se torna um hábito. Preconceitos (práticas de vida) são bons e maus, e se intercalam na história, não há convivência sem preconceitos. Preconceitos são noções orientadoras do agir que de tão práticas e praticadas se tornam em um jeito natural de ser e de agir. Temos como exemplo que há duas décadas o casamento era obrigatório em caso de gravidez precoce, tanto por parte dos pais da moça como pelos pais do rapaz, é fácil verificar que em nossos dias já não é mais assim. temos também que há 30 anos atrás as pessoas fumavam dentro de casa ou de qualquer outro estabelecimento (mercado, bar, restaurante, trabalho).
Se você tomar a compreensão do último parágrafo como referência poderá refletir comigo que na verdade não lutamos contra um preconceito qualquer, solto por ai. Nossa busca é de legitimar os nossos preconceitos em detrimento de outros preconceitos que possam colocar os nossos em risco, em conflito ou em deterioração.
Uma consequência direta da luta mundial contra o preconceito, todo e qualquer tipo de preconceito, foi a conversão do convencional em transgressor, a tradição (que é preconceito) familiar, social e cultural se tornaram em modelos não positivos de convivência. O preconceito afirmativo agora é ser transgressor (criar regras que se adequem a própria personalidade, desejos e interesses do individuo), e transgredir o convencional é agir positivamente, só que “o desejo de se furtar a uma convenção é, em si mesmo, uma convenção”, e na busca de se fugir do gato corre-se junto com o rato. Toda escolha é o resultado de uma produção conceitual, mas não basta a racionalização de conceitos. Pois a racionalidade não é o único componente necessário para a formulação de conceitos e pré-conceitos. Se as escolhas forem supremamente racionais perderão o poder real dos seus efeitos, visto que a racionalidade por si só não é suficiente, não é competente, não dá conta do humano e de toda a sua complexidade existencial; além de ser, a racionalidade, uma prática sempre tendente ao egocentrismo e preconceitos individualizantes.
Preconceitos são preceitos, conceitos e valores norteadores do próprio pensar, sentir e agir. Eles antecedem estes três em suas manifestações. Dito isto, temos que pensar uma outra questão da produção de conhecimento. Por mais racional que seja o conhecimento, e que esteja estabelecido como verdadeiro, é preciso uma autoridade (saber comprovado e saber autorizador) para que o mesmo se torne uma referência conceitual. O postulado contemporâneo de que todas as opiniões são válidas invalida o conceito racional/científico de produção do saber. A armadilha de nossa época “a busca de verdades em detrimento do convencional” na negação do que foi estabelecido pela tradição (tida como arcaica, opressora e preconceituosa), se contradiz, pois nega a  tradição o direito de ser um um preconceito valido. A consequência direta dessa atitude são as construções sem alicerces.
Preconceitos que surgem tendo como referência o sujeito que os preconiza. Isso faz parte do advento do individualismo racional, o indivíduo usa a filosofia para legitimar e legalizar o seu querer. O desejo pessoal se sobrepõe a qualquer outro, o preconceito é elaborado no e pelo indivíduo (singular), tudo que o contrarie é perverso. O mal é tudo ou todo que contrarie os preconceitos subjacentes no ser. Portanto, vale perguntar: Como criar uma comum-unidade se os princípios primeiros, gerais e sociais são autos de tudo, são determinações pessoais? O decente é agora de cunho singular, fruto de uma racionalidade prática e não de uma racionalidade racional ou racionalidade social/convencional.
O direito a todos com direito gera um paradoxo de direitos, visto que os direitos se fazem deveres que se excluem na possibilidade de realização de direito a todos. Como sustentar a máxima “Quero, portanto, tenho direito” para todos? Quanto mais radical o individualismo, mais paradoxal, e quanto mais presente, maior a sua autoridade sobre o querer e o ser do indivíduo. A falta de autoridades intermediárias, tais como a família, a igreja ou a escola pode a até prevenir de alguns males potenciais presentes nessas instituições, contudo, sua exclusão abre espaço para outras estruturas que veem para substituir e estabelecer novas, as quais desconhecemos e não podemos prever suas consequências. O que não significa que serão negativas, e certamente não serão totalmente positivas.
O fato histórico potencializador dessas transformações conceituais é o de que por ser certas discriminações absolutamente negativas (como por exemplo o preconceito racial e preconceito contra a mulher), não deveria significar dizer que todas discriminações sejam ruins. Discriminar é eleger/preferir/optar, e isso nos possibilita um aprimoramento existencial. É preciso trilhar esse caminho humano que nos humaniza. Sem discriminação de qualquer tipo, qualquer tipo de ação (como estupro e pedofilia) seriam válidos. A rejeição do preconceito não é boa em si mesma. A rejeição do negativo não é positiva. O reconhecimento da condição humana (boa e má) e o que se faz a partir disso que determina se o rejeitar é positivo. Filosofar é construir o pensar, é construir o saber, é decidir racionalmente (não somente) na convivência quais as ampliações e quais as limitações para a mesma. Isso é simples de justificar. A mente humana é uma formação cognitiva condicionada e estruturada ao seu meio de pertencimento. Logo, as suas determinações são determinadas por seu lugar de pertencimento, e, logo, os preconceitos que as envolvem ao mesmo tempo a determinam. Assim, a noção de verdade está subjugada as pressuposições e preconceitos do lugar onde é emitida. E, por isso, construir modelos sociais e vivenciais sem preconceitos se faz em preconceitos que afirmam não existir preconceitos. Não reconhecer autoridade é, levado a consequências extremas, não reconhecer a si. Pois subjugar o poder por seu mau uso é deslegitimar a condição existencial que permite fazer a análise. E em última instancia é colocar a si mesmo como a maior e mais absoluta autoridade. O que nos leva não a negar a autoridade, e sim legitimá-la somente a partir de si. A completa rejeição da autoridade[1] (qualquer uma) é egoísmo. Na matriz da convivência social (formatada em preconceitos) há positividades inerentes ao convívio humano, se se nega essa matriz a convivência se sujeita ao indivíduo, o que não é positivo para a sociedade. Seus preconceitos são para si mesmo, em favor de si, jamais do todo, visto que nega a autoridade e benevolência da convivência com o outro.
Há terríveis efeitos sociais ao se abandonar certos preconceitos. A escolha é sempre livre, até que se esteja (inconscientemente) preso a predisposições de gosto/preferência/interesse. A liberdade escoa quando abdicamos do próprio ato de escolher e suas motivações. No fundo queremos liberdade para nós e encarceramento do outro (de preferência em nós). O melhor dos mundos é o que eu tudo posso e o outro é o meio/caminho para eu tudo poder no meu querer. Algo é o que é porque alguém ou uma autoridade (pessoa ou não), o determinou. Todos os “algos” foram assim constituídos. Se negarmos a autoridade, negamos junto a validade de todas as coisas, inclusive qualquer que se dispõem em questionar a autoridade faz com que autoridade? Ao estruturar um pensamento que desvalida qualquer estrutura como sendo válida, faz se dessa construção uma contra estrutura, logo uma validação intelectual daquilo que se busca desvalidar. Como o exercício do julgamento (preconceitos) é inevitável, os preconceitos são necessários e salutares. Até porque sem preconceito não há virtudes. Não podemos despir-nos do que o mundo nos deu, perceber um nu só é possível por termos vestido nos com o mundo. Qual critério moral usamos para definir algo como bom ou ruim; o critério é preconceito e sem preconceito não é possível definir o melhor. Assim, é preciso aprender a ser preconceituoso. Ser preconceito não é pensar ou agir com preconceito (racial, gênero, econômico ou social), mas é saber que o preconceito é uma condição existencial humana e modela seu pensar, sentir e querer. Por isso precisa ser pensado como uma condição sine qua non que precisa ser percebida e aperfeiçoada na prática existencial humana. O preconceito é necessário para a manutenção da mais elementar decência, que foi estabelecida preconceituosamente com consciência e intenção de assim o fazer. Assim, livre-se das conotações negativas da palavra preconceito, e viva sem preconceitos de se ter preconceitos que gerem preconceitos melhoradores da existência e convivência humana. Encerro o texto com a citação de um trecho do livro referência desse texto:
“É preciso ter capacidade de discernimento para saber quando um preconceito deve ser mantido e quando deve ser abandonado. Os preconceitos são como amizades: devem ser mantidos em bom estado. Por vezes os amigos se distanciam, e por vezes o mesmo deve acontecer aos homens diante de certos preconceitos; mas a amizade frequentemente se aprofunda com a idade e a experiência, e o mesmo deve acontecer com alguns preconceitos. Eles são aquilo que dão caráter as pessoas, mantendo-as juntas. Não podemos viver sem eles.”




[1] A importância da autoridade está em se pensar em ter que confiar em uma pessoa que não está habilitada para realizar uma atividade em seu favor. Como pilotar um avião, fazer uma cirurgia do coração, educar seus filhos. É a autoridade que regimenta e capacita a preparação e instrução da correta execução.

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Reflexões sobre Moral e Ética

Reflexões sobre Moral e Ética

O que vem a ser moral? Ou ser uma pessoa moral? Ou quando dizemos para alguém: tem à moral? (geralmente interpelação a fazer algo). A questão é que sempre fazemos grande confusão ao que vem a ser moral e normalmente a confundimos com a ética. Essa reflexão tem por objetivo discorrer sobre isso, com a finalidade de apresentar uma sucinta clarificação, não definitiva, sobre o assunto.
Na dinâmica equação da vivência/convivência a primeira pessoa com quem convivemos é conosco mesmo, qualquer elaboração de ideias, palavras e falas, é antes de tudo um evento de nós para nós mesmos. É um acontecimento interno que se exterioriza, ou não, no mundo. Assim, somos construtores de realidades que em sua maioria o mundo nem percebe que existem, realidades que por serem existente somente em nós mesmos passam pelo crivo valorativo (bem/mal, certo/errado) existente em nós mesmos, e que somente podem ser valorados por outros se forem por nós externalizados (pela fala, escrita ou outro meio).
Então a primeira pessoa a valorar, censurar, aprovar/reprovar nossas ideias, pensamentos, vontades, desejos somos nós mesmos. Esse conjunto valorativo de nós para nós mesmos é o que designamos de moral, que é a valoração que nós mesmos fazemos dos nossos pensamentos e ações com interação conosco e com o mundo.
Por exemplo, Platão conta nos a história do anel de Giges:

Giges era um pastor que morava na região da Lídia. Após uma tempestade, seguida de um tremor de terra, o chão se abriu e formou uma larga cratera onde ele apascentava seu rebanho.

Surpreso e curioso, o pastor desceu até a cratera e descobriu, entre outras coisas, um cavalo de bronze, cheio de buracos através dos quais enfiou a cabeça e viu um grande homem nu que parecia estar morto.

Ao avistar um belo anel de ouro na mão do morto, Giges o tirou e tratou de fugir logo dali. Mais tarde, reunindo-se com os outros pastores para fazer o relatório mensal dos rebanhos ao rei, Giges usou o anel.

Após tomar seu lugar entre os pastores na Assembleia, ele girou por acaso o engaste do anel para o interior da mão e imediatamente tornou-se invisível para os demais presentes.

E foi assim, totalmente invisível, que Giges ouviu os colegas o mencionarem como se ele não estivesse ali. Mexeu novamente o engaste do anel para fora da mão e tornou a ficar visível. Admirado com a descoberta desse poder, Giges repetiu a experiência para confirmar a magia. Seguro de si, sem titubear, ele dirigiu-se ao palácio, seduziu a rainha, matou o rei a apoderou-se do trono.

Platão afirma que, tanto faz se colocarmos um anel desses no dedo de um homem justo e outro no dedo de um homem injusto, o fato é que não encontraremos ninguém com temperamento suficientemente forte para permanecer fiel à justiça e resistir à tentação de se apoderar dos bens e dos benefícios de outrem.

A grande pergunta que a alegoria nos suscita é o que você faria se fosse invisível? Essa é a análise do que é a nossa moral, o que faríamos se pudéssemos fazer o que nos conviesse sem o perigo de censura ou retaliação de outros.
O farol vermelho é um sinal claro de que o carro deve ser parado. Se o condutor para é porque acha justo, correto e certo parar seu veículo ou porque há uma força (legal/social) que obriga que o faça? A questão é refletirmos, moral é o que você decide com você mesmo a fazer ou não. Diferente de Ética, que é o que você decide em interação direta ou não, a fazer ou não. Ação que leva o outro em conta. A moral é uma questão pessoal, você com você mesmo, uma questão de regras de vivência.
Não se pode ignorar que essa moral não veio do nada, ou do além, e mesmo que tivesse vindo teria de ser transmitida a nós. O que nos leva a pensar que a moral é uma assimilação das realidades/verdades do mundo que participamos. A moral cristã, por exemplo, não fará o menor sentido num mundo de valores islâmicos, hindu ou outro. 
A moral é nestes termos o uso da inteligência para definir a melhor vivência, enquanto que a ética, como sua extensão, é o uso da inteligência para definir a melhor convivência. Veja que, na moral definimos quem somos e como convivemos, e nesse movimento da moral para ética construímos nossa relação com o outro. Veja bem, construímos, e assim, se uma relação qualquer que tenhamos não se apresentar como sendo boa, positiva e respeitosa, é porque os parâmetros morais utilizados na convivência não estão alinhados entre si (o que é normal de acontecer) e não está havendo a devida ou necessária atenção/cuidado/racionalização da situação, que poderia levar a uma possível solução ou uma possível aceitação das condições de convivência de forma respeitosa e produtiva. 
Já a Ética é a ação moral em ajustamento com outro em prol de uma melhor convivência. E aqui no campo da Ética não temos um simples diálogo entre moral e moral para construção de uma ética adequada para ambos, pois quando usamos nossa moral, que é uma produção/construção em nós da nossa interação com o mundo, ela já é um reflexo de um pensamento ético presente na estrutura da formação de nosso pensamento moral. Neste sentido para definirmos a ética que melhor se nos ajusta e compreendermos a formação moral que é a nossa, precisamos compreender as concepções éticas clássicas e suas influências sobre a nossa formação moral para então podermos definir qual é, ou ainda, qual seria a ética mais adequada para definir a nossa convivência a partir da nossa pratica moral e existencial.
Não poderíamos começar essa análise ético filosófica senão a partir de Sócrates, e em Sócrates encontramos a definição do ser como norteadora do agir ético por excelência. É na proposta do “conhece te a ti mesmo” que está a existência de maior significado e relevância, visto que todo o exterior não fará sentido sem uma adequação ao conhecimento de si que deveria condicionar o existir e o conviver. Então a Maiêutica é a dialética (Ironia) consigo e com o mundo para o conhecimento da verdade que habita o ser. Assim, a ética é um ajustamento de si a partir das verdades descobertas em si e no mundo para um ajustamento justo, equilibrado e ético ao ser e a convivência na polis, pois aqui a definição do bom viver não está no homem, mas antes na atuação do homem no todo social (Polis Grega), pois a sua moral só será justa e boa se promover um crescimento e engrandecimento da ética da polis grega que definiu a própria moral usada para isso como sendo uma moral ética.
Então vem Platão, aluno de Sócrates, e para ele o mundo é dualista (composto pelo mundo ideal e pelo mundo sensível), onde o mundo ideal é a realidade da alma (divina e infinita) que se sobrepõe ao mundo real (material e finito). O mundo das ideias é referência ética para a definição do existir. É lá que está a bondade, o amor, a justiça, o bem e tudo que seja necessário para uma existência boa e digna. A ética é então um ajustamento existencial a esse mundo soberano que norteia nosso existir moral. Platão e sua filosofia seguem o curso da história e ela nos traz o discípulo mais conhecido de Platão, Aristóteles, que foi um pensador de um proporção e produção imensa. E, segundo ele, a ética é um ajustamento aos desígnios cósmicos determinadores da excelência do próprio existir. Para Aristóteles, assim como em tudo no universo, há uma finalidade (thelos) para todas as coisas existentes e todos os seres viventes. A ética é então a transformação do ato do ser em potência do ser. A vida ética é aquela que atinge a sua finalidade cósmica. O flautista com a flauta, o cirurgião com o bisturi, o professor com o giz, Neymar com a chuteira e assim por diante. Nestes termos o existir moral é um ajustamento ético aos próprios dons, talentos e potencialidades que nos foram dadas, e a avaliação da vida boa, da vida com sentido ou da vida ética é feita tendo por referência as próprias potências, o próprio thelos. A vida boa, a vida ética nada tem a haver com sucesso, prestigio, riqueza e conquistas; ela é um ajustamento moral e ética ao próprio existir cósmico.
Temos ainda no horizonte do pensamento grego a ética desenvolvida pelo pensamento grego helenista, desenvolvido em pleno declínio sócio político grego, que faz com que a reflexão ética deixe de ter seu referencial em alguma realidade exterior divina, ideal, e passa a ter a referência ética em uma esfera pessoal e existencial. A busca não é do mundo ideal ou cósmico, agora a referência ética é a felicidade que se alinha e depende da ataraxia (paz de espírito) para existir. Seja no cinismo, ceticismo, epicurismo ou estoicismo (escolas mais conhecidas e difundidas) a prática filosófica é a de conquistar a ataraxia para experimentar a felicidade. E, nestes termos, a moral se ajusta a uma concepção ética de não permitir que realidades filosóficas e sócio estruturais condicionem o próprio ser, e sim, fazer o próprio ser se adequar moralmente há uma ética que tenha como adequação moral a ataraxia no próprio ser para o alcance da felicidade que agora está posta na esfera pessoal, no alinhamento da conjuntura moral há uma ética determinadora da existência pessoal.
E, por fim[1], temos a ética cristã, e nela a referência central é Deus, o viver moral e ético deve ser alinhado a vontade de Deus, pois a vida boa, o bom viver e existir pleno é uma decorrência de uma existência que se alinha a aquele que criou o ser e tem para ele o caminho da felicidade. A conduta moral então é uma prática existencial como criatura de Deus que tem um propósito para cada filho seu, e assim, o êxito existencial está nesse alinhamento da criatura ao criador, o alinhamento dessa conduta moral há uma conduta ética determinadora do existir como criatura de Deus e filho de Deus.
Assim, concluímos que a moral é a ação que o indivíduo tem na esfera intima e pessoal, ou seja, são as determinações das determinações do seu ser e do seu agir. E que essas determinações morais têm por referência as determinações éticas, que são norteadoras do agir e existir na esfera moral e na esfera relacional, ou seja ética.


[1] Não que o tema se esgota aqui, e sim por pretensão textual do assunto, ética é tema histórico e humano, enquanto convivermos falaremos e produziremos ética, para uma busca constante de adequação da convivência.

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Noções e Conceituações sobre o Tempo

Noções e Conceituações sobre o Tempo
“O tempo é equação humana que emana da existência
 tal qual a própria existência. Por ele se mede, se pensa e se entende o existir”

A Filosofia nos possibilita a oportunidade para pensarmos a respeito das estruturas que amoldam e condicionam o nosso pensar e o nosso existir, e muito para além de reflexões vazias ou que visem somente avaliações, notas e vestibulares; podemos tirar proveito para a vida, como saber prático realizador de novas consciências e como ferramenta para novas existências. Analisemos aqui alguns conceitos já elaborados sobre o tempo, sua formação e composição.
O que é o tempo? O tempo é elemento físico e cultural, regulador da vida humana. É acontecimento físico e psicológico/cognitivo, podemos defini-lo, mas nossa definição está sujeita a ele, e do momento que começamos a enuncia-lo até o momento que o enunciamos, ele já avançou sobre nós e modificou nossa condição em si. Então, como definir ou entender o tempo, visto que ele escapa no tempo quando tento o entender, e se modifica ininterruptamente, escapando aos meus sentidos e percepção?  
O tempo cósmico (histórico) é calculado matematicamente sobre o movimento de rotação da terra em torno do sol e de si mesma. É um tempo físico, matemático. Não existe no universo, não existe no planeta, ele existe no homem, existe como construção cognitiva compreensiva dos sucessivos acontecimentos no mundo. Tempo cósmico é a medida de espaço em equação com os acontecimentos nesse espaço. Ele não existe no mundo, mas existe na compreensão do mundo. Fosse outro nosso planeta (Jupiter demora 11 anos e Saturno 29 anos para dar a volta no sol), seria outra nossa compreensão de tempo e mundo. Assim, o tempo é sujeição dos sentidos e pensamento a realidade material e espacial que nos envolve.
Já para outros teóricos filosóficos o tempo tem outras concepções. Para Santo Agostinho (354-430 d.c.) “o tempo é aquilo que escapa”; “é aquilo que sei, mas se me perguntar não sei”. O conceito é de que podemos experimentar o tempo, não dizer o que ele é. Tempo seria experiência eterna (sem tempo) existe na alma, pois não encontramos o tempo no mundo, projetamos o tempo no mundo. Assim o tempo é uma construção do intelecto que o projeta sobre o mundo para entender a transformação do próprio mundo. Sem o tempo não teríamos tempo para entender o tempo, como fazemos agora.
Outra reflexão que Santo Agostinho faz sobre o tempo na sua obra Confissões livro XI, é a do conceito de tempo como realidade sempre presente que se direciona pelo presente já vivido (presente do passado) e do presente por viver (presente do futuro). Então temos que o presente seja a percepção do que acontece no agora e o passado seja as lembranças em mim do presente que se passou e o futuro seja as expectativas/esperanças que tenho no presente de um presente que ainda não aconteceu. E viver é, equacionar esses tempos no ser para entender o próprio ser do ser. O tempo é, portanto, a distensão dos movimentos (de ir e vir) da alma humana. À vida é um tempo só, um agora: passado, presente e futuro são modulações de um presente absoluto: presente das coisas passadas, presente das coisas presentes, presente das coisas futuras. Como diz Santo Agostinho: “a memória reproduz não as coisas em si, já passadas (pois o tempo passado já não é), mas as palavras nascidas das imagens destas, que ao passar se fixaram na alma, mediante os sentidos, quais vestígios”. Só podemos prever o futuro a partir da lembrança presente das coisas passadas: são as imagens contidas na memória e não as coisas futuras elas próprias (que ainda não são) que me permitem prever o futuro. Porque o tempo existe no homem, e nunca fora do homem “Medimos as impressões que permanecem no espírito depois da passagem do tempo, e não as coisas que passam” Em Agostinho, o futuro sopra em direção ao passado em função de uma alma que age.
Outro filósofo que refletiu sobre o tema e nos deixou sua contribuição sobre o tempo foi Henri Bérgson (1859-1941), em sua concepção o que nós chamamos de tempo é o processo de transformação da realidade. O tempo é a transformação que percebemos no mundo e em nós, e assim se determina como sensório motor, visto que é uma combinação de sensações e movimentos, e por se apresentar assim ele se torna em nós como aquele em que as coisas/acontecimentos/realidades existem e depois não existem mais. Para Bérgson pensamos o tempo como existência ou existencial, visto que somos seres de memórias, somos uma formação de pensamentos em predominância no passado (memórias) de realidades vividas e ao mesmo tempo, ou a memória restante, projetamos pensamentos (memórias projetivas) sobre o futuro, assim a existência é repetir o bem do passado e evitar o mal do passado. Temos em nós mais passado do que presente, assim vivemos o presente e percebemos as coisas por memórias do passado, que se torna o fundamento do existir. Bérgson ainda nos dirá que a tecnologia acelerou a nossa percepção do tempo, a vida passa mais rápido (lembrando que o tempo é a percepção que temos da passagem de uma realidade para outra). E por fim, segundo ele, a consciência da transitoriedade da temporalidade de todas as coisas e de nós mesmos é aquilo que nos dignifica como ser. Aqui temos um aprendizado da filosofia contemporânea, em que a condição existencial do homem é definida por ele mesmo. Bérgson dirá que nessa percepção de temporalidade transitória temos “Liberdade para enfrentar o Destino” e definir em nós mesmos o desenrolar do tempo como uma coisa/acontecimento interno sobre nossa jurisdição.
Já Wilhelm Friedrich Nietzsche (1844-1900) tematizou sobre o tempo em uma temática mais prático existencial, Nietzsche era um filósofo vitalista (à vida é critério para viver à vida), ao escrever sobre “O mito do eterno retorno” que formulou a partir do pensamento estoico de que o universo é a repetição de todas as coisas (a realidade e todas as coisas nele sempre retornam) ele tematiza a vida como uma série sucessiva de repetição das mesmas coisas, mesmas realidades, mesmos acontecimentos. Por isso o tempo se apresenta como eternidade imanente a vida (o que é eterno não é a vida, nem o tempo, eterno são os instantes que se vive na vida), eterno retorno e método existencial de adequar à vida a si mesma enquanto se a vive. É saber o que apetece e viver pelo que apetece, em Assim falava Zarastruta, o profeta diz: “se apetecer esforçar, esforça-te; se apetecer repousar; repousa-te”.
 O tempo é aquele em que se vive, é um instante de vida que não acaba, a vida é o instante do tempo e o que se vive se vive eternamente. O eterno retorno é critério temporal de avaliação da vida que está na vida, a vida vira critério existencial de avaliação da própria vida. Por isso ele questionava seus interlocutores: você escolheu essa vida ou foi escolhido por ela, amou essa vida ou a lamentou? Segundo Nietzsche, na vida nada é apetecível em si, se é apetecível é apetecível no ser, apetecível no instante em que vive o instante. A plateia desse momento de vida é você sozinho (que assiste a si mesmo e suas pulsões existenciais), essa é a eternidade. O decisivo não é sua validade ou verdade enquanto teoria, mas sim, seu valor enquanto fórmula da mais alta afirmação da vida e como instrumento necessário de seleção da melhor das vidas. Seria preciso, então, viver cada momento de modo que se quisesse segui-lo, vivendo o infinitas vezes. A implicação mais importante da doutrina do eterno retorno, pois, é essa nova compreensão que representa o vínculo necessário entre o indivíduo e a totalidade da vida, ou seja, entre tempo subjetivo e tempo objetivo. Sentimos a eternidade da vida afirmando-se a si mesma no instante em que identificamo-nos com ela ao fazer dela instantes contínuos de realização da própria potência vital.
Afim de permitir a reflexão sobre o tempo como uma extensão existencial e continua, Nietzsche colocará na boca do profeta (Assim Falava Zarastruta) a seguinte proposição:

"E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?". A vida que vale a pena é aquela que se deseja que se repita inúmeras e inúmeras vezes nos instantes de vida, no tempo presente sempre existente, no tempo da alma, na possibilidade da potência de si despejada no mundo.   

domingo, 30 de abril de 2017

Cultura, o que é isso?

Cultura, o que é isso?
CULTURA do latim colere que tem o sentido de “cultivo de” que quando aplicado nas ciências sociais (sociologia, antropologia, psicologia social) pretende dar sentido a toda apreensão humana e aprendizagem social que obtém por meio de sua socialização, a partir de sua sociedade de pertencimento.
Nas artes a cultura se apresenta como o cultivo de valores, inspirações, expressões que por encontrar ressonância pessoal e cultural (transcendência valorativa) entre o artista e aquele que contempla sua obra. Na vida a cultura se apresenta como o cultivo de diversificadas expressões e organizações humanas, que podemos perceber nos grupos humanos, nas tribos indígenas ou urbanas (rock, punk, funk, mpb, sertanejo, gospel). Temos também a cultura como cultivo intelectual e cognitivo, que diz respeito aos saberes cultivados ou adquiridos pelo indivíduo. Termo que designa o possuidor de tal cultura como “culto” ou “pessoa com cultura”.
A palavra cultura tem como origem primaria o cultivo, a transformação da natureza, ou seja, tirar algo de seu estado natural para lhe dar uma significação, sentido, utilidade que não lhe são inerentes (lã/roupas, minério/metal, laranja/álcool, água/energia). A cultura aplicada a existência e convivência humana visa transformar a sua natureza. Ela, a cultura, tira o homem do que lhe é natural como natureza[1] e lhe possibilita transcender a si mesmo, sua animalidade, e transcender a todos que lhe antecederam culturalmente e evolutivamente. Adquirindo cultura, o homem passou a depender mais do aprendizado cultural do que a depender do agir através de atitudes geneticamente determinadas. O processo de aprendizagem determina o comportamento do homem/mulher e a sua capacidade artística ou profissional. A cultura é um processo acumulativo resultante de toda a experiência histórica, experiência geracional, experiência social. Esse processo cultural/histórico/geracional limita ou estimula a ação criativa/criadora do indivíduo. Vejamos alguns estudiosos da questão.
Aristóteles, que nunca usou o termo cultura, definia o homem como um zoon politikon (animal político), um animal que se humaniza na polis/política, que seria a ética no conviver para aprimoramento do viver.
Para John Locke a mente humana não é mais do que uma caixa vazia na ocasião de seu nascimento, está é dotada apenas da capacidade ilimitada de obter conhecimento. Está ai a grande necessidade cultural.
Clifford Geertz alegoriza dizendo que somos Hardwares com softwares (projetados, programado) que são a forma e meio de entender/perceber o mundo. Aqui temos um tema de reflexão contemporânea, que é a de que a cultura virtual é transposta na cultura real, só que a cultura virtual seria um espelhamento da cultura real. Um post virá padrão e vira referência, um ato particular que viraliza e se torna expressão cultural, ainda que temporária.  
Benedict diz: “a cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo”. Com ele podemos pensar a respeito do Etnocentrismo (percepção e projeção cultural centrada na própria cultura), que exige a aceitação da diversidade, compreender a diversidade cultural e respeitar as diferenças.
Boa Ventura de Sousa Santos aborda a cultura e a multiplicidade de multiculturalismo e questiona, também, a atitude etnocêntrica que é a imposição da cultura de um grupo sobre outra cultura seja na religião, grupos de skate, rap, funk, área acadêmica, economistas.
Temos até aqui que a cultura não é biológica (o homem é o único animal com cultura), que se faz como uma especificidade humana. Assim, não podemos falar de determinismo biológico de povos, tribos, gêneros ou etnias. O que podemos afirmar é que as culturas não são estáticas e sim dinâmicas, que a cultura é uma simultaneidade de relações aprendidas e repetidas que se refazem dinamicamente na continuidade dessas relações. Afirmar que a cultura é um grande mecanismo de produção de significados material ou imaterial. Que cultura é um termo aberto e em transição, que se define como não definível. E que é também, específica de um grupo, de um jeito de viver econômico e educacional, que se subdivide em Cultura elite Cultural popular. Podemos falar que julgar, avaliar e inferiorizar uma cultura (etnocentrismo) qualquer não é coerente, visto que as culturas são uma construção sócio relacional em uma condição sócio existencial que não pode ser julgada, analisada, entendida com as lentes de uma outra cultura. Falar que temos aqui uma primeira abordagem sobre o tema cultura, que nos ajudará no caminho/processo de compreensão do mundo e de nós mesmos nele.
 O ser humano pode ajustar-se a um número maior de ambientes do que qualquer outra criatura, multiplicar-se infinitamente mais depressa do que qualquer mamífero superior, e derrotar o urso polar, a lebre, o gavião e o tigre, em seus recursos especiais. Pelo controle do fogo e pela habilidade de fazer roupas e casas, o homem pode viver, e vive e viceja, desde os polos da Terra até o equador. Nos trens e automóveis que constrói, pode superar a mais rápida lebre ou avestruz. Nos aviões e foguetes pode subir mais alto do que a águia, e, com os telescópios, ver mais longe do que o gavião. Com armas de fogo pode derrubar animais que nenhum tigre ousaria atacar. Mas fogo, roupas, casas, trens, automóveis, aviões, telescópios e armas de fogo não são parte do corpo do homem. Eles não são herdados no sentido biológico. O conhecimento necessário para sua produção e uso é parte do nosso legado social. Resulta de uma tradição acumulada por muitas gerações e transmitida, não pelo sangue, mas através da linguagem (fala e escrita). A compensação que o homem tem pelos seus dotes corporais relativamente pobres é o cérebro grande e complexo, centro de um extenso e delicado sistema nervoso, que lhe permite desenvolver sua própria cultura. (G. CHILDE. A evolução do homem. P.40 – 41).
Assim concluímos que: “Cultura é um adestramento fisiológico, biológico, neural e cognitivo a determinadas determinantes sócio estruturais estruturadas e estruturantes do ser que se perfazem nele na relação com o mundo”.




[1] Lembrando de Rosseau, “Gato é Gato”, o homem não tem instinto humano  e assim precisa desenvolver uma “tecnologia” adaptativa para viver e evolutiva para melhorar o viver.