A
Crítica da Cultura em Nietzsche e Freud
“O homem é uma corda atada entre o animal e o
além do homem – uma corda sobre o abismo” (Nietzsche)
“Os homens não são criaturas gentis que
desejam ser amadas e que apenas se defendem quando atacadas” (Freud)
A Sociedade, que é a associação dos homens
para um melhor viver e conviver, e a Cultura, que é toda uma produção objetiva
e subjetiva produzida pelos homens nessa associação, não são coisas naturais ao
homem, mas, antes são uma complementação necessária para que a existência em
comunidade seja possível. E, como não é natural, ou seja, inevitável que exista,
ou inevitável que exista como existe, ela sofrerá reflexões, revisões e transformações
no decorrer da história. O termo “crítica” tem esse sentido, de abrir-se para
refletir e pensar sobre a coisa (sociedade/cultura) o que é, porque é, como
veio a ser e se será o que é ou se será um outro é.
Wilhelm Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Sigismundo
Schlomo Freud (1856-1939) são propositores de uma abordagem da Sociedade e de
uma percepção da vida como formação cultural, e porque cultural, também repressora.
O indivíduo é, segundo eles, uma formação do meio. E por ser uma formação do
meio é preciso, para entendê-lo, estudar a formação do meio que o forma em
todos os seus aspectos existenciais.
Em o Nascimento
da Tragédia (1871), Nietzsche reflete sobre a influência direta que a
filosofia e o pensamento grego realizam sobre as formações existenciais
humanas, e aponta as influências objetivas da subjetividade do pensamento grego
nas sociedades em que se faz presente. Quando reflete sobre o ideal apolíneo e
o ideal dionisíaco, traz à tona o dinamismo e o jogo de forças que orientem a
vida humana, forças que foram separadas pela civilização, sobrepondo uma sobre
a outra, e nesse ato abafando uma das dimensões naturais do existir humano. Apolo
é o deus da beleza, da proporção, da harmonia e da serenidade; enquanto que Dionísio
é deus da embriaguez, da desordem, da paixão. Segundo Nietzsche, a Filosofia
Grega inicia um processo de decadência, ao afirmar certos valores (Apolíneos)
como superiores a outros (Dionisíacos), pois nega-se aspectos naturais e
constitutivos do próprio ser do humano, aspectos negativos próprios da condição
humana como é sofrimento, imperfeição, dor, morte. O cristianismo, segundo
Nietzsche, é uma filosofia/ideologia de continuidade ao pensamento grego, que também
reforça a busca de um outro mundo (Apolo/céu) em detrimento deste mundo
(Dionísio/terra). A crítica de Nietzsche a filosofia socrática-platônica-cristã
visa questionar os valores que sustentam nossa cultura, pois esses valores
subjugam o humano de si mesmo, e rouba-lhe aspectos fundantes e fundamentais do
seu ser (o Dionisíaco e suas características apontadas acima). Suas críticas
procuram perfazer a condição humana como aquela que cria valores e se submete
aos mesmos, e que se tal se permitir filosoficamente uma outra reflexão
filosófica (que inclua os aspectos apolíneos e dionisíacos dos humano) poderá
realizar a seu favor uma transvaloração de todos os valores.
Já para Freud em suas reflexões sobre a
cultura e a natureza humana (O Mal Estar na Civilização), mostra que não pode
haver cultura e civilização sem repressão. O humano é um resultante do processo
social e cultural, só que esse mesmo processo formador o impinge de limitações,
bloqueios e dilacerações do seu ser. Sobre isso, Freud faz referências diretas
as teses de Hobbes sobre o homem, em que esse seria paixão e desejo, que
significa que o homem não reluta em destruir ou subjugar outros homens quando
estes se apresentam como obstáculos a obtenção de seu desejo.
Poderá
parecer estranho a alguém que não tenha considerado bem estas coisas que a
natureza tenha assim dissociado os homens, tomando-os capazes de se atacarem e
destruírem uns aos outros. E poderá portanto talvez desejar, não confiando
nesta inferência feita a partir das paixões, que a mesma seja confirmada pela
experiência. Que seja portanto ele a considerar-se a si mesmo, que quando
empreende uma viagem se arma e procura ir bem acompanhado; que quando vai
dormir fecha as suas portas; que mesmo quando está em casa tranca os seus
cofres; e isto mesmo sabendo que existem leis e servidores públicos armados, prontos
a vingar qualquer injúria que lhe possa ser feita. Que opinião tem ele dos seus
compatriotas, ao viajar armado; dos seus concidadãos, ao fechar as suas portas;
e dos seus filhos e criados, quando tranca os seus cofres? Não significa isso
acusar tanto a humanidade com os seus atos como eu o faço com as minhas
palavras? (Thomas Hobbes, Leviatã).
Freud aponta que os esforços empreendidos na
manutenção de nossa civilização vêm resultando num estado de coisas que o
indivíduo é incapaz de tolerar sem se tornar profundamente neurótico[1]. O
embate entre essas forças vitais e as forças de destruição, existentes no
humano, são a contradição central da cultura e da sociedade contemporânea. É
preciso conviver para se realizar, mas é a convivência a castradora dos
impulsos vitais.
Freud ainda nos traz um outro apontamento
crucial para nosso entendimento da condição humana, que é contraditória e
paradoxal (visto que precisa da sociedade para existir, mas tem nela a
limitação de suas possibilidades de plena realização), o homem age movido por
paixões e desejos inconscientes, só que o homem perdeu no decorrer da história
os seus referenciais ideológicos e transcendentais. Freud apontará que a
existência humana foi golpeada em três níveis (cosmológico, biológico e psicológico).
O golpe cosmológico em veio com Nicolau Copérnico, que retirou o humano do
centro do universo; já o golpe biológico veio com Charles Darwin, pois este
apontou o humano (homo sapiens) como a resultante dos processos de seleção
natural e mutação genética. E em terceiro, o golpe psicológico, no qual o
próprio Freud apontou que o ego (eu) não é dono de sua própria casa, e assim
despedaçou a crença filosófica no poder da razão humana como suficiente para
determinar a própria existência do homem. A razão não é soberana, ela é
resultante de um processo complexo e paradoxal.
Podemos ver nesses apontamentos reflexivos
sobre a cultura feitos por Nietzsche e Freud, que a cultura é um derivativo, e
que ela não é absoluta e não está fechada. Assim, é preciso que se faça uma
reflexão da sua construção e da sua estrutura estruturadora para que se
identifique as condicionantes que a formaram e em um segundo momento para
entender a sua composição, e, assim, compreender o que é e aprender como se
relacionar com ela em sua forma e estrutura. O que os dois autores propõem é
que a cultura (o modo como vivemos em nossos valores e estruturas biológicas e
psicológicas) é uma formação realizada por nós, e como tal deve ser revisitada
em sua formação e estrutura para que se verifique que a mesma é possibilitadora
da melhor existência possível, visto que foi criada com esse pressuposto.
Assim, a perspectiva é de criar uma consciência da própria estrutura da
consciência, visto ser a consciência determinada pela estrutura, e assim se
permitir refletir a respeito da mesma, para aceitá-la, rejeitá-la ou mesmo
repensá-la em novas estruturas.
[1]
Freud define a neurose como a expressão de um conflito entre os desejos do
nosso inconsciente. Para ele, certos impulsos inconscientes são incompatíveis
com a realidade exterior ou são impossíveis de serem concretizados,
desenvolvendo-se no sujeito um intenso estado de ansiedade e mal estar geral.